segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Personagens Importantes que Fazem Parte da História do I Ching


FU HSI (V milênio a.C.): Herói mitológico, fundador da civilização chinesa. Primeiro Imperador da China. Segundo a tradição, viveu por volta de 4500 a.C. e foi o inventor dos oito símbolos (kua) de três linhas ou trigramas.

REI WEN (r.1171-1122)*: Foi o fundador “honoris causa” da dinastia Chou (1111 - 249), a terceira e mais longa dinastia da China - as duas primeiras dinastias foram, a Hsia (2183-1752) e a Shang (1751-1112). Segundo a tradição, duplicou os trigramas formando os símbolos (kua) de seis linhas ou hexagramas e redigiu os julgamentos (kua-tzu) dos hexagramas em 1143 ou 1142 a.C., durante o cativeiro ao que foi submetido pelo Rei Chou Hsin, último soberano da dinastia Shang.

DUQUE DE CHOU (m. em 1094 a.C.): Tan, filho do Rei Wen e irmão mais novo de Wu, este último, o primeiro soberano da dinastia Chou. Segundo a tradição, redigiu os julgamentos das linhas (yao-tzu) dos hexagramas, completando assim o texto divinatório.

K’UNG FU TZU (551 - 479): Confúcio foi o primeiro mestre da China e transmissor dos costumes e dos ritos da dinastia Chou. Seus discípulos desenvolveram uma escola filosófica que se tornou a doutrina oficial do Império durante 2041 anos (de 136 a.C. a 1905 d.C.) Embora não haja certeza de que ele tenha escrito uma linha sequer, segundo a tradição foi o autor das Dez Asas (Shih I) ou Apêndices, que na realidade são os primeiros comentários filosóficos sobre o texto divinatório do Chou I (Mutações de Chou), como era chamado o I Ching naquela época.

CH’IN SHIH HUANG-TI (m. 210 a.C.): Fundador da dinastia Ch’in (221-206) e o primeiro soberano a unificar a China, em 221 a.C. Em 213 a.C., seguindo a orientação do relatório enviado pelo seu primeiro ministro Li Ssü (280-208), promoveu uma queima geral de livros antigos, da qual só o Chou I, por ser um livro divinatório, e o Calendário das Plantações e das Colheitas, foram poupados.

TUNG SHUNG SHU (179 - 104): Foi o autor do relatório em 136 a.C. onde se recomenda a proscrição de todos os ensinamentos exceto as Seis Disciplinas de Confúcio: Shu (História); Shih (Poesia); Li (Ritos); I (Mutações); Ch’un Ch’iu (Anais da Primavera e do Outono) e Yüeh (Música). Assim, os cinco livros (shu) usados para ensinar as Seis Disciplinas - do Yueh Shu ou Livro da Música só há referências - foram promovidos a Cinco Clássicos (Wu-Ching) formando o primeiro Cânone Confucionista: Shu Ching (Shang-Shu) ou Clássico da História; Shih Ching (Mão-Shih) ou Clássico da Poesia; Li Chi ou Clássico dos Ritos; I Ching (Chou-i) ou Clássico das Mutações e Ch’un Ch’iu ou Anais da Primavera e do Outono . Tung Shung Shu realizou uma síntese da teoria cósmica, dos princípios de governo e das idéias éticas associadas a Confúcio, estabelecendo as bases do “Confucionismo Ortodoxo”, que se tornou a doutrina do Estado durante vários séculos. Nos seus trabalhos expôs a interação do Céu, da Terra e do Homem com o eterno Ciclo Yin-Yang e o Ciclo dos Cinco Estados de Mutação (madeira, fogo, terra, metal e água). Acreditava que os fenômenos naturais anormais - tais como, tempestades, enchentes, secas, terremotos, eclipses etc - eram uma forma de comunicação entre o Céu e o Homem - isto é, avisos ou alertas através dos quais o Céu demonstrava sua discordância com a conduta dos soberanos.

WU-TI (r. 140 - 86): Imperador da dinastia Han Anterior (206 a.C - 8 d.C). Tornou os ensinamentos da escola confucionista a doutrina oficial do Império. Criou o título de Wu-ching-po-shih ou Erudito dos Cinco Clássicos, prova obrigatória para entrar no serviço público.

PO HU T’UNG (79 d.C.) Durante a dinastia Han Posterior (25-220) uma grande convenção de sábios foi convocada através de um Edital Imperial em 79 d.C. para sistematizar o estudo dos Clássicos Confucionistas. A Ampla Discussão da Convenção do Tigre Branco (Po Hu T’ung) propiciou a elaboração de um modelo de correspondência entre as Quatro Estações ou Ciclo do Tempo, o Ciclo da Interação Yin-Yang, o Ciclo dos Cinco Estados de Mutação, o Ciclo dos Oito Trigamas e os Oito Pontos Cardeais, sintetizado no diagrama da Bússola Universal.

WANG PI (226 - 249) O mais importante filósofo da dinastia Wei (220 -265). Primeiro comentarista a fazer uma análise filosófica do I Ching. Muito embora seu comentário se referisse basicamente ao Hsi Tz’u Chuan ou Comentários aos Julgamentos Anexos (5ª e 6ª Asas), o Chou I lüeh-i ou Esclarecimentos Simples sobre o I Ching, influenciou os comentaristas posteriores durante 500 anos.

CHOU-TUN-I (1017-1073): Considerado o fundador do Neo-Confucionismo é o autor de dois pequenos tratados filosóficos fundamentais: o T’ai-Ch’i-t’u shuo ou a Explanação do Diagrama do Grande Último e o T’ung-shu ou Penetrando no I Ching.

CHENG-I (1033-1107): Um dos dois mais importantes comentaristas do I Ching da dinastia Sung (960-1289). Estudou o I Ching do ponto de vista filosófico e seu comentário, o I Chuan ou Comentário sobre o I Ching, teve uma grande influência sobre os comentaristas posteriores durante séculos, tanto na China quanto no Japão.

CHU-HSI (1130 -1200): O outro grande comentarista do I Ching da dinastia Sung. Autor de dois trabalhos fundamentais: o Chou-i pen-i ou Conteúdo Básico do I Ching e o I-hsueh ch’i-meng ou Doutrina do I Ching para Principiantes. Este último comentário popularizou o I Ching na China e no Japão, além de resgatar seu aspecto oracular. Além disso, Chu-Hsi complementou o Cânone Confucionista com os Quatro Livros (Shu): o Lun Yu ou Analectos; o Meng tzu ou Livro de Mencius; o Ta Hsueh ou O Grande Aprendizado; e o Chung Yung ou A Doutrina do Meio. Os Quatro Livros, junto com os Cinco Clássicos, se tornaram a base da doutrina Neo-Confucionista.

ITO JINSAI (1607-1705); ITO TOGAI (1670-1736)e ITO ZENSHÔ (m. após 1771): Três gerações de estudiosos do I Ching no Japão, representantes da escola dos Textos Antigos. O avô, Jinsai, começou o estudo do I Ching; seu filho, Togai, dedicou sua vida a completar o trabalho iniciado pelo pai; e seu neto, Zenshô, publicou a obra de seus ancestrais.
* As datas decrescentes são anteriores a Cristo e as datas crescentes são posteriores a Cristo.

As Várias Seções do Texto do I Ching


Nas muitas versões existentes, o texto do I Ching ou Clássico das Mutações aparece ordenado de diversas formas. Nas edições mais antigas, anteriores à dinastia Han Anterior (206 a.C. - 8 d.C.), o texto aparece ordenado da seguinte forma: os Símbolos (Kua) de seis linhas ou hexagramas, o Ideograma que denomina os Hexagramas (Kua-ming), o Julgamento dos Hexagramas (Kua-tzu) e o Julgamento (a) de cada linha dos hexagramas (Yao-tzu). Após os textos dos 64 hexagramas, aparecem, em ordem seqüencial, os seguintes textos: Comentário sobre a Decisão (T’uan Chuan), Imagem (Ta Hsiang Chuan), Comentários (b) de cada linha dos hexagramas (Hsiao Hsiang Chuan), Comentário aos Julgamentos Anexos ou Grande Tratado (Hsi T’zu Chuan ou Ta Chuan), Comentário sobre as Palavras do Texto (Wen Yen), Discussão dos Trigramas (Shuo Kua), Seqüência (Hsu Kua Chuan) e Coletânea de Indicações (Tsa Kua Chuan). Essa disposição dos textos mostra que na antigüidade se distinguia claramente o texto divinatório dos comentários filosóficos que, segundo a tradição, foram elaborados seis séculos mais tarde.

Já nas versões a partir de Pi Chih, da dinastia Han Anterior, alguns ou todos os seguintes textos aparecem distribuídos ao longo dos 64 hexagramas: Seqüência, Coletânea de Indicações, Comentário sobre a Decisão, Imagem, Comentários (b) de cada linha dos hexagramas e Comentário sobre as Palavras do Texto (Wen Yen) - apenas nos hexagramas 1 e 2. Essa disposição do texto mostra claramente o processo de fusão do texto divinatório com os comentários filosóficos.

O ideograma que denomina os Hexagramas, o texto do Julgamento dos Hexagramas e o texto do Julgamento (a) de cada linha dos hexagramas, formam o texto divinatório do I Ching - cuja origem se remonta à época da tradição oral dos advinhos xamãs, em torno do Iº milênio a.C. - e por terem sido desenvolvidos com fins divinatórios podem ser considerados o âmago do Oráculo.

Os textos do Comentário sobre a Decisão, da Imagem, do Comentário aos Julgamentos Anexos ou Grande Tratado e da Discussão dos Trigramas, são comentários filosóficos, elaborados posteriormente por Confucionistas e Taoístas, sem relação com o espírito do Oráculo.

Já os textos do Comentário (b) de cada linha dos hexagramas, da Seqüência, da Coletânea de Indicações e do Comentário sobre as Palavras do Texto dos hexagramas 1 e 2, não somente não contribuem para o esclarecimento do I Ching ou Clássico das Mutações como que, em muitos casos, confundem.

A versão utilizada pelos principais tradutores ocidentais, inclusive Richard Wilhelm, é o Chou-i-che-chung, chamada também de Kang Hsi ou Edição do Palácio, de 1715. Trata-se da última versão clássica do texto, usada até hoje na China e no Japão quando alguém consulta o Oráculo.

Texto Divinatório (compilado entre XII e VII a.C.)
Ed.Kang Hsi= Versão Wilhelm= Localização
Kua= Hexagrama= Livro 1º e 3º
Kua-ming= Nome do Hexagrama= Livro 1º e 3º
Kua-tzu= Julg.do Hexagrama= Livro 1º e 3º
Yao-tzu= Julg.das Linhas= Livro 1º e 3º

Comentários Filosóficos (compilados entre VI e I a.C)
Ed.Kang Hsi/ Versão Wilhelm/ Localização na Versão Wilhelm
T’uan Chuan/ 1ª e 2ª Asas/ Comentário s/a Decisão (Livro 3º)
Ta Hsiang Chuan/ 3ª e 4ª Asas/ Imagem (Livro 1º e 3º)
Hsiao Hsiang Chuan/ 3ª e 4ª Asas/ Linhas (b) (Livro 3º)
Hsi Tz’u Chuan/ 5ª e 6ª Asas/ Comentário aos Julg.Anexos (Livro 2º)
Hsi Tz’u Chuan/ 5ª e 6ª Asas/ Julgamentos Anexos (Livro 3º)(14 Hexa.)
Wen Yen/ 7ª Asa/ Comentários sobre Palavras do Texto(Livro 3º)(Hex.1/2)
Shuo Kua/ 8ª Asa/ Discussão dos Trigramas (Livro 2º)
Hsu Kua Chuan/ 9ª Asa/ Sequência (Livro 3º)
Tsa Kua Chuan/ 10ª Asa/ Coletânea de Indicações (Livro 3º)

As Primeiras Consultas ao Chou I (I Ching)


“Se não tens um mestre, aproxima-te do I Ching como de teus pais” (Hsi Tz'u Chuan, Segunda Parte, capítulo VIII, parágrafo 3).

A Importância do I Ching na Civilização Chinesa
O I Ching - chamado na antiguidade Chou I - é o mais antigo dos clássicos confucionistas e o primeiro livro da bibliografia chinesa. Além de ser o mais antigo documento escrito em chinês - fato amplamente confirmado pela filologia - é o mais importante livro da literatura clássica chinesa, haja vista a enorme influência que teve no desenvolvimento espiritual e cultural da China. O I Ching influenciou os mais variados campos do conhecimento, tais como: filosofia, matemática, política, estratégia militar, teoria da pintura e da música e as artes de um modo geral. Para se ter uma ideia cabal da importância espiritual do I Ching, basta dizer que foi o único livro poupado da queima geral de livros promovida em 213 a.C. pelo soberano de Ch’in, Shih-Huang-ti (morto em 210 a.C.) justamente por se tratar de um livro oracular. Mas a sua importância cultural ficaria definitivamente consolidada alguns anos mais tarde quando foi incluído no grupo dos chamados Clássicos Confucionistas que durante mais de dois mil anos serviram de base educacional, não somente na China, mas também no Japão, Korea, Vietnan, Manchuria e Mongolia, regiões que adotaram a doutrina confucionista como modelo.

A supremacia do Confucionismo sobre todas as outras escolas filosóficas ocorreu em conseqüência do desenvolvimento da filologia - ciência que estuda os documentos antigos - durante a dinastia Han Anterior (206 a.C. - 8 d.C.). A seleção dos documentos antigos que formaram o primeiro cânone coube ao ministro Tung-Chung-shu (179-104) durante o reinado de Wu-ti (140-86). A seguir a transcrição de algumas passagens do memorial enviado por Tung-Chung-shu ao soberano Wu-ti, provavelmente, em 136 a.C:

“O princípio da unificação é um exemplo do que é apropriado estender do passado para o presente. Mas os Mestres de hoje em dia tem diversos caminhos (Tao), os homens seguem diversas doutrinas e cada escola filosófica tem seu próprio ponto de vista que difere daquele que as outras ensinam. Daí que os soberanos não tem como realizar a unificação geral, pois os estatutos governamentais mudam freqüentemente e os homens não sabem o que seguir. Eu, seu ignorante servidor, sugiro que tudo o que não estiver dentro do campo das Seis Disciplinas - Ch’un Ch’iu (Anais da Primavera e do Outono, I (Mutações), Shu (História), Shih (Poesia), Li (Ritos) e Yueh (Música) - ou artes de Confúcio, deveria ser banido e impedido de progredir. Discursos maldosos e licenciosos deveriam ter um basta. Somente assim é que será possível a unificação geral e as leis poderão ser respeitadas, pois os homens saberão o que devem seguir”. Mais adiante, continua: “Entre as coisas fundamentais para a formação de sábios, nada é mais importante que a universidade. A universidade está intimamente ligada à formação de sábios virtuosos e é a base da educação. Seu servidor pede a vossa Majestade que construa uma universidade e nomeie mestres ilustres para a formação dos sábios do império.”

A partir da sugestão de Tung Chung-shu, adotou-se a doutrina Confucionista como a ideologia oficial do império excluindo-se todas as outras doutrinas - imposição que prevaleceu até 1905. Além disso, estabeleceu-se o grau de Wu-ching-po-shih ou Erudito dos Cinco Clássicos, graduação necessária para qualquer um que aspirasse a ocupar um cargo público.

Com a fusão dos princípios da escola Yin/Yang (princípio obscuro e princípio luminoso) e da escola Wu-Hsing ou Cinco Estados de Mutação (madeira, fogo, terra, metal e água) a escola Confucionista passou a centrar sua filosofía na interação entre a Natureza e o homem, princípio que dominaria o cenário filosófico chinês durante os próximos três séculos - até o advento de Wang-Pi e sua doutrina metafísica.

Foi a partir daquele momento que a figura de Confúcio (551-479) começou a mudar o status de sábio para ser-divino, e a escola Confucionista começou a se transformar na religião Confucionista. Desta forma, através de um decreto imperial, o I Ching - junto com os outros clássicos Confucionistas - foi promovido a livro sagrado, o que pode ser explicado pelo fato de que na China o imperador era o filho do Céu - o representante da divindade entre os homens - encarregado de estabelecer os ritos sagrados. Mas, se por um lado o I Ching ocupou o lugar mais proeminente na literatura chinesa, por outro lado ele também era considerado o de mais difícil interpretação. Desde os tempos mais antigos o texto do I Ching era tido como obscuro e misterioso e, a despeito da vasta literatura gerada nos mais de dois mil anos de estudo e comentários, ainda hoje sua interpretação apresenta dificuldades aparentemente intransponíveis para aqueles que não dispõem ainda de um espírito suficientemente evoluído.

As Origens Segundo a Tradição dos Comentários.
Seguindo a tradição descobrem-se pelo menos três versões para a origem do I Ching:

1) a divina; 2) a racional e 3) a mitológica.

No Shuo-Kua ou Discussão dos Trigramas (8ª Asa), no capítulo I, parágrafo 1, diz:

“Os santos-sábios da antiguidade compuseram o Livro das Mutações da seguinte maneira: para ajudar de modo misterioso aos Deuses Luminosos eles inventaram o oráculo de caules de milefólio. Ao Céu atribuiram o número três, e a Terra o número dois; a partir daí calcularam os demais números. Contemplaram as mutações na escuridão e na luz e de acordo com elas estabeleceram os símbolos (kua)”. E mais adiante, no parágrafo 2, diz: “Constaram, então, o Tao do Céu e o chamaram de o obscuro e o luminoso. Constataram o Tao da Terra e o chamaram de o maleável (jou) e o rígido (kang). Constataram o Tao do homem e o chamaram de o amor e a justiça. Combinaram esses três poderes e os duplicaram. Por isso, no Livro das Mutações cada signo é formado por seis linhas".

 Considera-se aqui a origem do I Ching ligada à prática oracular através das varetas de milefólio, de natureza, portanto, divina.

Na Primeira Parte do Hsi Tzú Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos (5ª e 6ª Asas) no capítulo II, parágrafo 1, diz: “Os santos-sábios formaram os hexagramas para que se pudesse perceber neles os fenômenos”. E, mais adiante, no capítulo VIII, parágrafo 1, diz: “Os santos-sábios possuiam uma visão do conjunto de toda a confusa diversidade existente sob o Céu. Contemplavam as formas e os fenômenos e criavam representações das coisas e seus atributos. Eles as chamavam de imagens”. Desenvolve-se aqui uma explicação racional para a invenção dos hexagramas, os quais são considerados imagens da realidade, resultado da observação do Céu e da Terra.

Na Segunda Parte do Hsi-Tz’u Chuan, no capítulo II, lemos:

 “Quando na mais remota antigüidade Fu-Hsi - o herói mitológico, fundador da civilização chinesa - governava o mundo, ele levantou os olhos e contemplou as imagens no Céu e abaixou os olhos e contemplou os fenômenos na Terra. Observou os sinais dos pássaros e dos animais e sua adaptação às regiões. Ele procedia diretamente a partir de si mesmo, e indiretamente a partir das coisas. Inventou, assim, os oito trigramas para entrar em contato com as virtudes dos Deuses Luminosos e para organizar as condições de todos os seres. Ele trançou as cordas e as utilizou em redes e cestas para caça e pesca. Provavelmente inspirou-se para isso no hexagrama ‘o Aderir’ ”.

Descreve-se aqui o começo da civilização a partir das imagens simbólicas criadas por Fu-Hsi através da observação da Natureza e o posterior desenvolvimento cultural, de cunho, portanto, mitológico.

Com relação ao julgamento que acompanha cada uma das seis linhas dos sessenta e quatro hexagramas (trezentos e oitenta e quatro julgamentos), também encontramos na tradição dos comentários pelo menos duas versões.

Na Primeira Parte do Hsi-Tz’u Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos, no capítulo II, parágrafo 1, diz: “Eles (os santos-sábios) acrescentaram os Julgamentos para indicar a boa fortuna e o infortúnio.” Um pouco mais adiante, no capítulo II, parágrafo 1, diz: “As decisões se referem as imagens (hexagramas). Os Julgamentos das linhas se referem às mudanças”. Desta forma, pode-se notar que na primeira parte do Hsi Tz’u se sugere que os julgamentos dos hexagramas (kua-tzu) e os julgamentos das linhas (yao-tzu) foram realizados por Fu-Hsi, o herói mitológico, na antiguidade remota.

Na Segunda Parte do Hsi-Tz’u Chuan, no capítulo XI, diz: “As mutações surgiram na época em que a casa Yin (Shang) chegou ao seu término e o modelo da casa Chou estava em ascensão; ou seja, a época em que se confrontavam o Rei Wen e o tirano Chou Hsin. Por isso, os Julgamentos do livro advertem tantas vezes contra o perigo”. Assim, na Segunda Parte do Hsi-Tz’u, há referências a um fato histórico de onde surgiu a tradição que atribui ao Rei Wen - pai do primeiro soberano da dinastia Chou (1111 - 249) - durante o cativeiro a que foi submetido pelo último soberano da dinastia Shang (Yin), Chou Hsin, a autoria dos hexagramas; e ao Duque de Chou - Tan, filho do Rei Wen, que após a morte do seu irmão o Rei Wu, regeu exemplarmente o reino em nome do seu sobrinho Cheng - a autoria dos julgamentos das linhas.

Por último, a tradição é unânime em atribuir a Confúcio a autoria de todas as Asas ou Apêndices (Shih I) anexos ao texto adivinhatório.

As Origens Segundo os Documentos Históricos
Para avaliar a autenticidade histórica das versões tradicionais sobre a origem do I Ching é necessário se referir, em primeiro lugar, a alguns documentos do Shu Ching ou Livro da História - uma coleção de documentos que vão da época do legendário Imperador Yao (2335?-2234?) até o Rei Hsiang (629-597) e que estão assim distribuídos: um documento de Yao; quatro documentos de Shun (2233?-2184?); quatro documentos da dinastia Hsia (2183?-1752?); sete documentos da dinastia Shang ou Yin (1751?-1112?) e trinta documentos da dinastia Chou (1111?-249).

Das seis classes de documentos do Shu -Cânones, Conselhos, Instruções, Proclamações, Discursos e Encargos - “Conselhos” são a segunda classe mais importante e contém observações e sugestões de altos funcionários sobre assuntos de governo. “Os Conselhos do Grande Yu” é o segundo dos quatro documentos do Yu e trata, entre outros assuntos, da renúncia de Shun e da nomeação de Yu para o trono. No diálogo, Shun tenta convencer Yu a assumir o cargo enquanto que Yu se nega a aceitar.

Yu, disse: “Submete cada um dos ilustres ministros ao julgamento adivinhatório e indica o escolhido”. O Soberano (Ti), respondeu: ”De acordo com as regras de adivinhação deve-se primeiro refletir sobre o indicado e depois submeter seu nome ao julgamento da grande carapaça de tartaruga. Como minha mente estava determinada eu deliberei com todos os meus ministros e com o povo e eles concordaram comigo. Os espíritos deram seu consentimento e a carapaça de tartaruga e as varetas adivinhatórias também concordaram. A advinhação, quando favorável, não deve ser repetida”.

“O Grande Plano” (Hung-Fan) - o quarto dos trinta documentos de Chou - geralmente relacionado entre os “Conselhos” ou entre as “Instruções”, poderia perfeitamente ser incluído entre os “Canônes”, os mais importantes e exaltados documentos do Shu Ching. De acordo com as frases introdutórias, o Rei Wu, fundador da dinastia Chou, obteve o “Grande Plano” do Conde Ch’i no mesmo ano em que derrotou o tirano Chou Hsin, o último soberano da dinastia Shang. O “Grande Plano”descreve o modelo de governo da nação a ser adotado pelo soberano e está dividido em nove seções. A sétima seção refere-se à prática da adivinhação e nos dá uma idéia de como ela era usada na China desde os tempos mais remotos para resolver importantes questões de Estado.

VII. Dos Meios de Examinar os Assuntos Duvidosos. Funcionários escolhidos e indicados para advinhar pela carapaça de tartaruga e pelas varetas de milefólio devem ser cobrados na realização de suas tarefas. Desta forma eles devem descobrir os sinais de chuva, de melhora do tempo, de tempo nublado, de ligação e de cruzamento e os símbolos internos e externos (os trigramas inferiores e superiores). Ao todo são sete sinais: cinco dados pela carapaça de tartaruga e dois pelas varetas de milefólio; e através deles qualquer erro poderá ser evitado. Três funcionários deverão realizar a adivinhação e o julgamento dos dois resultados coincidentes deverá ser seguido. Quando você (o Soberano) tem dúvidas sobre algum assunto importante consulte com sua própria mente (medite); consulte com seus altos ministros e funcionários; consulte com o povo; consulte com a carapaça de tartaruga e as varetas adivinatórias. Se você, a carapaça, as varetas, os ministros, os altos funcionários e o povo, todos concordam em relação ao curso da ação, isso é que se chama “uma grande concordância” e o resultado será o bem estar de sua pessoa e a boa fortuna de seus descendentes. Se você, a carapaça e as varetas estão de acordo, enquanto que os ministros, os altos funcionários e o povo discordam, o resultado será favorável. Se os ministros, os altos funcionários junto com a carapaça e as varetas concordam enquanto que você e o povo discordam, o resultado será favorável. Se o povo, a carapaça e as varetas concordam enquanto você e os ministros e os altos funcionários discordam, as ações internas serão favoráveis e as ações internas desfavoráveis. Quando a carapaça e as varetas se opõem à visão dos homens, haverá boa fortuna se permanecer quieto e infortúnio se agir.

“O Cofre Lacrado de Metal” é o sexto documento de Chou e trata de um episódio muito importante na História da China. O Rei Wu - o filho mais velho do Rei Wen - está muito doente e sua morte parece iminente. Seu irmão Tan, o Duque de Chou, apreensivo com o futuro da incipiente dinastia, concebeu a idéia de morrer no lugar do irmão e pede aos “três soberanos”- seus imediatos progenitores - através de uma prece para ser levado no lugar do Rei Wu. Após mandar o Escriba escrever a prece nas tabuletas de madeira, ele adivinha para saber se foi ouvido pelos progenitores e guarda as tabuletas no cofre lacrando-o com bandas de metal.

“Oh, não deixem a indicação preciosamente outorgada pelo Céu cair por terra e nossos reis ancestrais também terão alguém com quem contar para realizar nossos sacrifícios para sempre. Eu agora procurarei saber o resultado de sua determinação através da grande carapaça de tartaruga. Se vocês atenderem ao meu pedido eu segurarei estes símbolos e este cetro e aguardarei as novas ordens. Se vocês não atenderem ao meu pedido eu os porei de lado”. O Duque então adivinhou com três carapaças de tartaruga e todos os prognósticos foram favoráveis.

Através do testemunho desses documentos históricos pode-se concluir que naquela época grande atenção era dada ao método de adivinhação da carapaça de tartaruga e quase nenhuma atenção ao método de adivinhação das varetas de milefólio - e nenhuma palavra é mencionada sobre o Chou I. Mais ainda, no documento onde o duque de Chou se propoe adivinhar parece no mínimo improvável que se seu pai fosse verdadeiramente o autor dos julgamentos dos hexagramas e ele próprio o autor dos julgamentos das linhas, como sugere a tradição, ele preferisse consultar com a carapaça de tartaruga três vezes no lugar das varetas de milefólio.

A conclusão a que se chega é que no começo da dinastia Chou ainda se adivinhava com a carapaça de tartaruga, passando com o decorrer do tempo a se adivinhar com as varetas de milefólio. Assim, quando estudamos o Tso Chuan - um registro dos principais acontecimentos históricos da China entre 722 e 481 a.C. - nos deparamos nada menos do que com dezesseis referências ao método de adivinhação com as varetas de milefólio e uma referência apenas ao método de adivinhação com a carapaça de tartaruga.

Os Primeiros Registros Históricos do Chou I (I Ching)
No Tso Chuan - um registro dos principais acontecimentos históricos da China entre 722 e 481 a.C., provavelmente compilado em torno do século III a.C. - há registradas dezesseis referências ao método de adivinhação através dos caules de milefólio - I Ching - e apenas uma referência ao método de adivinhação através da carapaça de tartaruga:

1) Em 671 a.C. o escriba real consultou sobre o futuro do jovem príncipe Li de Ch’ien.
2) Em 660 a.C. um vassalo do príncipe Pi Wan de Chin I - consultou sobre seu futuro no serviço público.
3) Em 659 a.C. existe um registro dando conta que o Rei Huan consultou o oráculo sobre o futuro de seu filho Ch’eng-chi que estava por nascer.
4) Em 644 a.C., o adivinho Tu-Fu consultou o oráculo sobre a campanha do Rei Mu de Ch’in contra Chin, onde estava proibida pelo rei daquele estado de comprar grãos.
5) Em 644 a.C. há um registro da consulta feita ao oráculo pelo Rei Hsien de Chin sobre o futuro do casamento de sua filha com o Rei de Ch’in.
6) Em 602 a.C. um dos soberanos de Cheng numa entrevista com o Rei Wan-man se referiu ao I Ching.
7) Em 596 a.C. um dos vassalos de Chin, conversando sobre a Guerra com Ch’u, da qual ele tinha participado, se referiu ao I. Ching.
8) Em 574 a.C. o Rei de Chin ordenou que seu escriba consultasse o oráculo sobre um plano estratégico numa batalha dificil contra as tropas de Ch’u.
9) Em 563 a.C. aparece um registro relatando que Mu Chiang, a mãe do Príncipe Ch’eng de Lu, que morreu no palácio do Leste, antes de ser removida para lá ordenou a seu escriba que consultasse o I Ching.
10) Em 547 a.C. um dos vassalos de Ch’i, Ts’ui Wu-tzu, ordenou aos escribas que consultassem o I Ching sobre a viúva do soberano de T’ang cuja beleza o tinha cativado.
11) Em 544 a.C. Tzu T’ai-shu (Yu chi), vassalo do Marques de Cheng, por ocasião do relatório que prestou sobre sua missão em Ch’u se referiu ao texto do I Ching.
12) Em 540 a.C. o médico real de Ch’in no diagnóstico sobre a doença do Príncipe de Ch’in se referiu ao I Ching.
13) Em 534 a.C. o ministro de Wei, K’ung Ch’eng-tzu, consultou o I Ching sobre a sucessão do Duque Hsiang de Wei, cujo primogênito, Meng Chi, tinha uma deficiência nas pernas.
14) Em 512 a.C. supostamente apareceu um dragão em Chin. O escriba Ts’ai Mo, falando sobre o tal dragão, se referiu ao I Ching.
15) Em 509 a.C. o mesmo escriba e astrólogo Ts’a Mo, falando sobre Chi Ping-tzu, que tinha sido promovido a vassalo, se referiu ao I Ching.
16) Em 487 a.C. Yang-lu, vassalo de Chao Yang de Chin, consultou o I Ching sobre a possibilidade ou não de se juntar a Cheng na guerra contra Sung.

Com base nessas referências pode-se concluir que o Chou I já existia no século VII a.C. e que seu texto gozava de grande autoridade entre os membros da classe aristocrática da dinastia Chou. Um outro aspecto relevante é que até o século VII a.C. o livro era usado exclusivamente como Oráculo. Naquela época os reis, príncipes e vassalos não o consultavam diretamente, mas se utilizavam dos serviços de um ou mais adivinhos. Em 602 a.C. aparece um registro em que o Chou I não é consultado apenas como Oráculo, mas também é usado como um instrumento de interpretação dos fenômenos do mundo. A partir daí, embora continuasse a ser utilizado como Oráculo, se observa cada vez mais uma tendência à utilização do texto do Chou I como instrumento de interpretação do mundo e dos fenômenos contidos nele. Assim, durante os séculos VI e V a.C., o Chou I, mesmo conservando sua função oracular, começa a ser utilizado como um livro filosófico.

 Pode-se concluir que o Chou I era originariamente um texto divinatório desenvolvido por xamãs da corte e monges, cuja forma atual foi modelada muito provavelmente entre os séculos VIII e VII a.C e que posteriormente se transformou num livro filosófico.

Os Principais Comentaristas na China e no Japão
A partir do século VII a.C. surgiram na China alguns comentários dedicados ao estudo do I Ching, que com o passar do tempo foram anexados ao texto adivinatório na forma de apêndices. Trata-se dos mais antigos comentários teóricos sobre o I Ching e o Hsi Tz’u Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos - sem dúvida o mais importante deles - pode ser considerado como o início do estudo do I Ching na China. A importância dada a esses textos tem variado consideravelmente ao longo dos últimos dois mil anos. Alguns comentaristas, seguindo a tradição, atribuíram a Confúcio a autoria dos Dez Apêndices ou Asas (Shih I), outorgando-lhes, portanto, uma enorme importância. Outros, pelo contrário, consideraram esses comentários totalmente desprovidos de valor. Na realidade, o que tem por trás desses dois pontos de vista tão radicalmente opostos é a disputa entre a escola dos Textos Antigos e a escola dos Textos Novos, que desde o início da polêmica - por volta do nascimento de Cristo - até os tempos atuais tem sido um dos assuntos mais controvertidos entre os sábios da China. A escola dos Textos Antigos - que se desenvolveu na dinastia Han Posterior (25-220 d.C.) sustentava que Confúcio não tinha escrito mas apenas transmitido os textos das Seis Disciplinas, enquanto que a escola dos Textos Novos - que se desenvolveu na dinastia Han Anterior (206 a.C. - 8 d.C.) - afirmava que o Mestre era o autor dos livros clássicos e por isso foi considerado pelas gerações posteriores não somente o sábio mais perfeito mas o primeiro Mestre.

É claro que nos últimos dois mil anos o I Ching tem sido estudado muito mais no Oriente do que no Ocidente. O I Ching desde a antigüidade ocupou o primeiro lugar entre os Clássicos Confucionistas, portanto, é lógico que atraísse a atenção de filósofos e filólogos que intentavam, uma e outra vez, decifrar e esclarecer o obscuro e misterioso significado do texto. Desta forma, não é de se estranhar que ao longo desses dois mil anos de comentários se avolumasse uma vasta literatura em torno do I Ching. Para se ter uma idéia da extensão dessa literatura basta dizer que no Ssu-k’u ch’uan shu tsung-mu são mencionados mais de quinhentos trabalhos dedicados de uma forma ou de outra ao estudo do I Ching.

Já foi mencionado que a literatura em torno do I Ching começou a formar-se entre os séculos VI a.C. e I a.C., no Período dos Filósofos, - época em que apareceram as Dez Asas (Shih I) - como conseqüência do trabalho desenvolvido por inúmeros estudiosos anônimos. A tradição atribui algumas ou todas as Asas a Confúcio, embora a ideologia do I Ching e o pensamento do Mestre sejam mutuamente excludentes: “do sobrenatural, da violência, da loucura e dos espíritos, não falo. (Lun Yü, VII, 21).

• As Dez Asas (Shih I) são comentários do texto divinatório e não o texto divinatório propriamente dito, embora muito cedo, provavelmente entre os séculos I e IV d.C., elas estivessem tão associadas ao I Ching que passaram a se tornar parte dele.

Durante a dinastia Han (206 a.C. - 220 d.C.) se desenvolveu uma escola de comentaristas e estudiosos do I Ching, ligados à literatura religiosa e mística daquela época. O movimento popular religioso conhecido com o nome de Huang-Lao - o legendário Huang-Ti ou Imperador Amarelo e Lao-Tzu - associado à escola Yin-Yang e a escola dos Cinco Estados de Mutação - desenvolveu um complexo sistema de crenças e ritos a tal ponto que a filosofia caiu no ocultismo. Assim, como uma reação a essa forma de interpretação distorcida dos fenômenos do mundo começaram a aparecer as primeiras tentativas de compreender o texto do ponto de vista filosófico. Nesse sentido, foi muito importante o trabalho realizado por Wang Pi (226-249), da dinastia Wei (220-265) - autor da primeira tentativa de racionalização do texto do I Ching: o Chou I lüeh-li (Esclarecimentos Simples dos Princípios do I Ching) - que se opôs radicalmente à escola adivinatória que se desenvolveu na dinastia Han e cujos comentários não encontraram nenhuma receptividade entre os adivinhos de sua época. A seguir transcreve-se na íntegra a seção 4 do comentário acima citado, onde Wang Pi desenvolve as relações entre as palavras, as imagens e o pensamento.

“São as imagens (hexagramas) que dão o sentido, são as palavras que tornam as imagens claras. Para esgotar o sentido nada melhor do que as imagens; para esgotar as imagens nada melhor do que as palavras. As palavras devem-se concentrar nas imagens, e assim as palavras certas para descrever as imagens são encontradas. As imagens devem-se concentrar no sentido, assim as imagens certas para descrever o sentido são encontradas. O sentido é esgotado por meio das imagens. As imagens são esgotadas por meio das palavras. Desta forma, aquele que fala de forma a tornar as imagens claras, compreende as imagens e esquece as palavras; aquele que reproduz as imagens que contém o sentido compreende o sentido e esquece as imagens. É como seguir uma trilha para caçar uma lebre. Uma vez que se caça a lebre se esquece da trilha. Ou, como espalhar redes para pescar. Uma vez que se consegue o peixe se esquece da rede. Assim, as palavras são as trilhas das imagens, e as imagens são as redes do sentido. Conseqüentemente, aquele que retém apenas as palavras não compreende as imagens, e aquele que retém apenas as imagens não compreende o sentido. As imagens provém do sentido, mas se alguém retém apenas as imagens então não foram retidas as imagens certas. As palavras provém das imagens, mas se alguém retém apenas as palavras, então não foram retidas as palavras certas. Assim, apenas esquecendo as imagens pode-se compreender o sentido e apenas esquecendo as palavras pode se compreender as imagens. De fato, compreender o sentido consiste em esquecer as imagens, e compreender as imagens consiste em esquecer as palavras. Assim, se são escolhidas as imagens que esgotam o sentido completamente, pode-se esquecer as imagens. E se os trigramas são duplicados de forma a esgotar a situação por completo, então pode-se esquecer os trigramas. Se, então, acerta-se nos tipos, pode-se construir suas imagens; se está-se em harmonia com as orientações, pode-se dar testemunho. Se a orientação é para usar a força, que necessidade há do cavalo? Se a orientação é para ser obediente, que necessidade há da vaca? Se as linhas individuais correspondem a obediência, que necessidade há de dizer que K’un é a vaca? E se a orientação é para atuar com força, que necessidade há de dizer que Ch’ien é o cavalo? Se por causa da associação de Ch’ien com o cavalo se segue apenas as palavras do texto, então se obtém um cavalo mas não Ch’ien. Desta forma há uma infinidade de doutrinas supérfluas espalhadas por aí e é difícil de levá-las em consideração. Assim, se a interpretação da interação do sentido e da imagem do hexagrama básico é inadequada, e a isso soma-se as mutações e transformações; então estas últimas serão mais inadequadas ainda. E se ainda por cima leva-se em consideração os cinco estados de mutação (água, madeira, metal, fogo e terra) aí que perde-se totalmente a noção das coisas. Mesmo que se seja o suficientemente inteligente para resolver qualquer tipo de problema por meio dessas sutilezas, ainda assim não se tem nada de onde possa-se extrair uma orientação. Essa é a conseqüência de prestar atenção as imagens e esquecer o sentido. Somente quando se esquece as imagens e se presta atenção ao sentido a orientação aparece”.

Para Wang Pi o I Ching não é mais um compêndio de superstições ou um campo fértil para especulações, mas um livro de sabedoria, de onde são extraídas as orientações para a ação e para a tolerância. A interpretação de Wang Pi permaneceria incontestada durante os próximos 500 anos.

Com o advento da dinastia Sung (960-1279) começa uma nova era no estudo e na interpretação do I Ching. Praticamente todos os grandes pensadores do período Sung se dedicaram longamente ao estudo do I Ching. Aquele que é considerado o fundador da filosofia Sung, Chou-Tun-i (1017-1073) é o autor de um pequeno tratado chamado T’ai Ch’i - t’u ou A Explanação do Diagrama do Grande Último onde a partir da mônada primordial se explica o processo evolutivo pela interação do yin e do yang - a força cósmica passiva e a força cósmica ativa -, passando pelos cinco estados de mutação, até alcançar as infinitas coisas. O outro tratado fundamental de Chou-Tun-i é o T’ung-shu ou Penetrando no I Ching. Nesses dois breves tratados, Chou-Tung-i estabelece os princípios de sua filosofia baseando-se nos princípios do I Ching. A partir desse momento o I Ching assumiu uma importância ainda maior no Confucionismo.

Mas os dois comentaristas mais importantes da dinastia Sung são Cheng I e Chu-Hsi. Cheng I (1033-1107) estuda o I Ching do ponto de vista filosófico e seu comentário influenciou os estudiosos do I Ching durante séculos, tanto na China quanto no Japão. Para se ter uma idéia do pensamento do Cheng I, transcreve-se a seguir a introdução a seu famoso comentário:

“As mutações (I) são as transformações que nos ocorrem de acordo com a passagem do tempo, para acompanhar o Caminho (Tao) de desenvolvimento do mundo. Este livro é tão amplo e abrangente que através dele nós podemos permanecer em harmonia com as leis da Natureza e do destino, podemos penetrar nas causas do que está aparente e do que está oculto, podemos absorver toda a essência dos objetos e dos eventos e podemos através dele descobrir o caminho da perfeição. E pode-se dizer que seus sábios-autores tiveram a máxima preocupação com as gerações futuras. Embora estejamos longe daqueles tempos antigos os textos básicos legados por eles foram preservados até nossos dias. Todavia, alguns comentaristas que nos precederam perderam o sentido e conservaram apenas as palavras. Seus seguidores repetem as palavras mas esqueceram sua essência. Começando pela dinastia Ch’in (221-206) cuja tradição de ensinamentos provavelmente não mais existe. Vivendo mil anos mais tarde, receio que essa tradição se desvaneça e desapareça e gostaria que as gerações futuras descobrissem as fontes através desta trilha. Essa é a razão pela qual decidi escrever o presente comentário. No I Ching há quatro caminhos para alcançar a sabedoria perfeita: 1) alcançar o sentido do texto através das palavras; 2) alcançar o sentido das transformações através das ações; 3) alcançar o sentido das imagens através da construção dos instrumentos; e, 4) alcançar o sentido do Oráculo através da adivinhação. As leis relativas ao aumento e à diminuição da boa fortuna e do infortúnio e o caminho que leva ao avanço e ao retrocesso da salvação e da morte, todos eles, na sua totalidade encontram-se incluídos no texto do I Ching. Compreendendo o texto e estudando os hexagramas poderemos entender as transformações. As imagens e os oráculos estão todos incluídos nelas. O homem superior (chun-tzu) em épocas de repouso contempla as imagens e compreende o texto e em épocas de atividade ele observa as transformações e compreende os oráculos. É possível traduzir o texto e não alcançar as idéias, mas é impossível alcançar as idéias sem entender o texto. Suas leis estão ocultas e suas imagens aparentes. Mas sua essência e sua aparência tem a mesma origem, pois não há diferença entre o oculto e o aparente. Se os contemplamos na sua mútua penetração e, acima de tudo, colocamos em prática a disciplina, então tudo poderá ser inferido pelos textos. Portanto, aqueles que compreendem perfeitamente os ensinamentos segurando o sentido das palavras, procederão com perfeição. Aqueles que não procedem com perfeição é porque não compreenderam nada do que foi dito. O que eu transmito são palavras. Alcançar as idéias por trás das palavras depende de cada pessoa. No reino de Sung, no primeiro mês do segundo ano de Yuan Fu (1099). Cheng I de Ho-nan”.

O segundo maior comentarista da dinastia Sung foi Chu Hsi (1130-1200). Chu-Hsi tem dois trabalhos dedicados ao I Ching: o Chou I pen - i ou Conteúdo Básico do I Ching e o I - hsüeh ch’i-meng ou A Doutrina do I Ching para Principiantes. O primeiro trabalho é um longo tratado no qual o autor tenta esclarecer a concepção básica do I Ching. Na interpretação dessa concepção Chu-Hsi dá grande ênfase ao aspecto adivinatório do I Ching - aspecto que foi ignorado pela maioria dos comentaristas da dinastia Sung. Chu Hsi também compreende perfeitamente o lado filosófico do I Ching e tenta revelá-lo sem destruir artificialmente aquilo que está firmemente unido dentro dele. Esse trabalho de Chu-Hsi representa uma das mais profundas e esclarecedoras investigações do I Ching em todas as épocas. O segundo trabalho de Chu-Hsi é uma espécie de introdução ao estudo do I Ching, ou seja, um trabalho composto pelo professor para uma audiência que tinha pouco ou nenhum contato com o clássico Confucionista. E é precisamente esse comentário simples que teve uma grande circulação e popularização. Isso pode ser explicado pelo fato de que o grande contingente de leitores de literatura sobre o I Ching era formado por pessoas que estavam se preparando para o exame oficial de ingresso no serviço público e conseqüentemente estudavam o I Ching compulsoriamente e não pela sua livre e espontânea vontade.

Durante o período da dinastia Ch’ing na China (1644-1911) alguns comentaristas japoneses contribuíram consideravelmente no estudo do I Ching. Itô Jinsai (1667-1705) e seus dois filhos famosos, Togai (1670-1736) e Rangu (1693-1778), foram os maiores expoentes da chamada Escola dos Textos Antigos. Itô Jinsai começou o estudo do I Ching com um pequeno trabalho sobre o significado antigo dos dois primeiros hexagramas (Ch’ien e K’un). Mas, o trabalho monumental que cobre todo o I Ching seria completado pelo seu filho, Togai. A publicação dos comentários do avô e do pai caberia ao filho de Togai, Zenshô, em 1771. A seguir transcreve-se, na íntegra, a introdução que Zenshô escreveu ao publicar a obra de seus antepassados.

“Durante seu reinado o Imperador Fu-Hsi examinou o que está acima, o que está abaixo, o que está na frente, e o que está atrás e desenhou os trigramas com a ajuda dos quais interpretou os atributos do mundo e os ordenou de acordo com a realidade. Ele dobrou os oito trigramas e criou os 64 hexagramas que constituíram a base do seu sistema de interpretar o mundo. Com relação à origem do Ho T’u ou Mapa do Rio Amarelo, eu não sei se a sua interpretação está correta. Será que a origem do I Ching se remonta ao final da dinastia Yin, ao apogeu da dinastia Chou, ou ao período em que o Rei Wen de Chou e Chou-Hsin de Yin lutavam pela supremacia? No Ta Chuan ou Grande Comentário há claras alusões a este problema, mas é impossível estabelecer com precisão o nome e a época do autor do I Ching. Diz-se que o autor dos kua-tz’u ou julgamentos foi o Rei Wen e o autor dos yao-tz’u ou comentário das linhas foi o Duque de Chou, mas, na minha opinião, essa versão foi elaborada pelos Confucionistas da dinastia Han e não há nenhuma evidência no I Ching que confirme aquela tese. No seu conteúdo este livro é amplo e abrangente, sofisticado e nada lhe escapa: com a ajuda das transformações provocadas pela diminuição e pelo aumento das forças cósmicas - luz e obscuridade - explica o mecanismo de avanço e retrocesso, a existência e a decadência do homem, e interpreta o sucesso e o fracasso da ação e dos momentos de remorso e arrependimento. De acordo com essa teoria, evitando o desenvolvimento exagerado, vivendo com auto-controle e mantendo a correção nas relações com as pessoas e o seu lugar entre elas através de uma rígida auto-disciplina, é possível alcançar a perfeição. Trabalhando pelo bem-estar deve-se agir até onde for possível sem levar em consideração as possibilidades ou impossibilidades de uma situação temporária; deve-se desejar alcançar o bem-estar independentemente das condições vigentes e não somente não deve nunca render-se à tais condições como que deve procurar-se vencer tais condições. É isso que o I Ching nos ensina. Se alguém declara que o I Ching ensina a procurar o bem-estar e a evitar o prejuízo essa é uma opinião superficial. Desde os tempos antigos havia dois aspectos contidos no livro: o filosófico e o oracular. O homem superior na época de repouso o estudava filosoficamente de forma a fazer uma autocrítica da conduta pessoal, mas na época de movimento ele consultava o Oráculo de forma a resolver os problemas. No Lun-Yü, Confúcio disse: “Se me fosse dado viver mais alguns anos eu dedicaria mais cinqüenta anos ao estudo do I Ching e assim evitaria cometer graves erros”. (Lun-Yü, capítulo 7). O Mestre escolhia somente o que devia ser seguido e o seguia. É possível, pois, entender porque ele escolheu este e não nenhum outro livro. As Dez Asas foram escritas em épocas diferentes, baseadas em escolas diferentes, e de acordo com autores de opiniões diferentes. Aqui ocorreu exatamente a mesma coisa que aconteceu nos comentários posteriores com tantas opiniões divergentes. Todavia, tanto o aspecto filosófico quanto o aspecto divinatório estão contidos nelas. Esta multiplicidade de interpretações é, de um modo geral, alheia ao próprio I Ching mas cada autor se baseia naquilo que conhece. Nestes textos há um desvio dos ensinamentos dos sábios perfeitos. E é um erro completo considerar que todo o texto das Asas pertence ao Mestre sem levar em consideração essas circunstâncias. Quando os livros das três primeiras dinastias - Hsia, Shang e Chou - foram queimados apenas o I Ching, por ser um livro divinatório, foi preservado e encontrado em perfeitas condições pelos organizadores da primeira bibliografia, na dinastia Han. Porém, na antigüidade o texto básico se encontrava separado dos comentários que consistiam em doze capítulos. Foi Fei, da dinastia Han, que pela primeira vez colocou os textos do T’uan Chuan (Comentário da Decisão) e os textos do Ta-Hsiang Chuan (Imagens) após cada hexagrama. A partir dessa época a ordem dos textos variou de acordo com cada comentarista. Entretanto, durante a dinastia Wei (220-265). Wang Pi desenvolveu uma interpretação livre do texto e Han K’ang-po comentou as Dez Asas sem levar em consideração o aspecto divinatório, baseando-se apenas no aspecto filosófico. Seus pontos de vista são corretos e merecem atenção. Mas, durante as dinastias Wei e Chin (265-420) o misticismo era muito apreciado e em conseqüência os ensinamentos de Lao-Tzu e Chuang-Tzu se tornaram comuns na interpretação dos livros dos sábios perfeitos. Esses pontos de vista poderiam estar corretos, mas nas suas interpretações havia erros. Essas tradições explicavam o sistema dos sábios perfeitos, mas de forma distorcida. Durante a dinastia Sung, Ch’eng I compôs um comentário que é uma interpretação exclusivamente filosófica e considera a sua missão explicar o sistema dos sábios. Seus pontos de vista são corretos, sublimes e claros e pode-se dizer que é o mais perfeito comentário desde a época dos “Três Períodos” (as três primeiras dinastias: Hsia, Shang e Chou). Mas o autor reconciliou a interpretação do texto do T’uan Chuan (Comentário da Decisão) com os hexagramas e a interpretação do texto do Ta-Hsiang Chuan (Imagens) com o Comentário Wen-Yen. Desta forma, no seu comentário há algumas generalizações pouco claras e artificiais, erros que ele não conseguiu evitar. Chu-Hsi, quando escreveu o comentário Chou-I-pen-i ou Conteúdo Básico do I Ching, explicou o texto e os comentários de acordo com o conteúdo de cada um. Nos seus comentários filosóficos e filológicos há muita coisa que pode ser aproveitada. De acordo com nosso Mestre (Confúcio) o I Ching é um texto filosófico, mas Chu-Hsi o considera um texto divinatório, portanto devemos considerar sua interpretação duvidosa. Meu saudoso avô (Ito Jinsai) começou a estudar o I Ching nos seus anos de decadência explicando os dois primeiros hexagramas até o Ta-Hsiang Chuan (Imagens) e chamou seu comentário de “O significado Antigo do I Ching”. Meu saudoso pai (Ito Togai) durante muito tempo se interessou profundamente pelo I Ching, estudou as diferenças e os pontos em comum das diferentes escolas de comentaristas e fez observações sobre elas. Ele realizou esse trabalho com muito cuidado e dedicação e com todo seu poder intelectual. Meu saudoso avô costumava dizer de seu trabalho: “É quase inacessível o trabalho dos estudiosos antigos do I Ching”. Como meu avô morreu sem conseguir completar “O Significado Antigo”, meu pai, seguindo a tradição de nossa casa e comparando criticamente as diferentes escolas de comentaristas, realizou a sua própria interpretação e a chamou de “Explicação Completa do I Ching e suas Interpretações mais Antigas”. Nesse trabalho ele segue estritamente o significado básico do I Ching de forma a ensinar as gerações futuras como aplicá-lo aos assuntos humanos. No que diz respeito as Dez Asas, em particular aquelas passagens que prejudicam os ensinamentos dos sábios perfeitos, ele também as esclareceu estritamente de acordo com seu significado, sem forçar sua interpretação, de forma que o que é correto se torna claro. Nesse sentido, tanto o texto básico quanto as Dez Asas recuperaram seu significado verdadeiro evitando o caos geral. Em relação aos métodos de adivinhação existem várias interpretações entre os comentaristas Confucionistas da dinastia Sung. Meu pai prestou especial atenção à exposição do significado antigo desses métodos e os interpretou detalhadamente no seu livro. Com relação à disposição dos textos, segue Cheng I. Na minha opinião essa interpretação do texto do I Ching se destaca dos outros textos posteriores. Neste ano, antes de imprimir o livro e torná-lo público, eu, como em outras ocasiões, consultei a opinião de outras pessoas e só então mandei imprimi-lo com o objetivo de divulgar o conhecimento contido nele e de forma que não perecesse no futuro. 8º ano de Meiwa (1771), lua nova do 11º mês. Itô Zenshô, escreveu isto com deferência.”

A Influência do I Ching na Filosofia Chinesa
Confúcio disse: “Do sobrenatural, da violência, das perturbações e dos espíritos, não falo” (Lun-Yü, VII, 21), mas no Shuo-Kua Chuan ou Discussão sobre os Trigramas (8ª Asa), lemos: “Na antiguidade, quando os sábios criaram a doutrina das mutações eles penetraram profundamente na lucidez dos espíritos e geraram o oráculo de milefólio.” Do simples confronto dessas duas citações fica absolutamente claro que o racionalismo de Confúcio nada tinha a ver com a mística irracional que era na época o conteúdo do I Ching. Assim, o sinólogo japonês Tsuda Sôkichi está perfeitamente certo quando diz que o I Ching não foi aceito por Confúcio, mas pelos Confucionistas, muitos séculos após sua morte. Em verdade, a visão do mundo de Confúcio - que exigia em primeiro lugar a retificação dos nomes (cheng-ming), através da qual se procuraria estabelecer de uma vez por todas a relação entre a nomenclatura de direito e de fato; ou seja, a imutabilidade de um documento - era completamente diferente daquela enfatizada no I Ching: a transformação. Assim, a afirmação do grande historiador Ssu Ma Ch’ien (145-86) no Shih Chi ou Registros Históricos - a primeira história geral da China em 130 capítulos que se estende das origens até o reino de Wu-ti (140-87) na dinastia Han - em relação à intensa ocupação de Confúcio com o I Ching, não passa de uma ficção. Quando foi, então, o I Ching incluído no círculo da literatura Confucionista? Em relação a essa pergunta, se investigarmos o período que vai de Confúcio (550-479) a Ssu ma Ch’ien (145-86), encontramos o seguinte: 1) Nem no Ta-Hsueh ou O Grande Aprendizado - um curto tratado da escola Confucionista atribuído, improvavelmente, a Tseng Tzu, um discípulo de Confúcio, e agora incluído no Li Chi (capítulo 39) - nem no Chung-Yung ou A Doutrina do Meio - pequeno tratado da escola Confucionista atribuído ao neto de Confúcio, Tzü Ssu (morto em 402 a.C.) - nem no Mencius - uma coletânea de ditados de Meng-Tzu (372 - 289), o segundo grande mestre do Confucionismo - há alguma menção ao I Ching. 2) O I Ching é mencionado no Tso-Chuan e no Hsün-tzu - este último, um tratado de trinta e dois capítulos atribuído a Hsün-Tzu (298-238), o terceiro grande mestre do Confucionismo - mas não como um clássico Confucionista. 3) No Chuang tzu apócrifo - apenas os sete primeiros dos trinta e três capítulos são atribuídos ao grande mestre Taoista - e no Lün - Shih Ch’un - Ch’iu - uma coletânea de várias escolas do pensamento realizada sob a orientação de Lü Pü - wei (morto em 235 a.C.) - a escola do I Ching e a escola Confucionista são citadas como duas escolas independentes. 4) Na queima geral dos livros Confucionistas promovida em 213 a.C. por Ch’in Shih Huang-ti o I Ching foi poupado. 5) o eclético Chia I (200-168), que era simpatizante do Confucionismo, aceitou o I Ching; e a partir dele outros Confucionistas da dinastia Han - inclusive Tung Chung-Shu - passaram a considerá-lo um clássico.

• O I Ching passou a ser considerado um dos Clássicos Confucionistas entre os anos 213 e 168 a.C.
• A filosofia de Wang Pi - o mais importante filósofo das dinastias Wei e Chin - que brilhou até o advento da dinastia Sung (960-1279) , nasceu do I Ching.


A escola Sung, absolutamente inseparável do I Ching, desenvolveu seus conceitos a um nível filosófico. A terminologia, as imagens e os conceitos de Chou-Tun-i - o fundador da escola Sung foram extraídos do I Ching. Não por acaso, Chou Tung-i exclamou: “Oh, que majestoso é o I Ching. Ele é a fonte da essência e da vida” (Tung-shu, capítulo1). Os típicos representantes da escola Sung não se limitaram a tomar emprestadas apenas as idéias do I Ching e admirá-las. Um contemporâneo dessa escola e um dos maiores poetas da China, Su Shih (1036-1101) apropriou-se do conceito básico do livro: o conceito de imutabilidade inerente à permanente mutação. Os Confucionistas não se contentaram em estudar o I Ching mas algumas vezes tentaram imitá-lo. Esse é o caso do T’zi-Hsüan Ching ou Livro do Grande Mistério de Yang Hsiung, um texto extremamente difícil que não foi desvendado até agora e que é acompanhado por 81 figuras formadas por símbolos de quatro linhas (tetragramas) de três tipos: inteiras, partidas e partidas duas vezes.

A influência do I Ching na literatura Taoísta é interessante. O I Ching não pode ser considerado um texto Taoísta e muito menos ser ligado ao Taoísmo primitivo, uma vez que o Taoismo se centra no absoluto - o Tao, além das fronteiras do mundo manifestado - e o I Ching se ocupa justamente dos acontecimentos do mundo manifestado. Conseqüentemente, não é de se estranhar que os Taoístas primitivos não fossem identificados com a escola do I Ching e que no Chuang-tzu apócrifo (capítulo 33) o Taoismo contrastasse com a doutrina do I Ching. Entretanto, a partir de I d.C. e até VII d.C., os  Taoístas começaram a experimentar uma forte influência do I Ching. Seu princípio básico - a transformação - aportava o elemento chave para a fundamentação teórica da alquimia que tomou conta dos praticantes taoístas. Assim, o famoso texto do Chou I t’s’an - t’ung - ch’i ou Reunificando os Três Iguais do ponto de vista do I Ching atribuído a Wei-Po-Yang estava, como seu título o indica, intimamente ligado ao I Ching e em verdade foi escrito usando a terminologia do I Ching e com a aceitação implícita de sua ideologia. Ademais, estão especialmente associados ao I Ching os esquemas e diagramas que aparecem no Cânone Taoísta. Em todo caso, não deve-se perder de vista que a maior influência sobre o Taoismo foi exercida pelo Hsi Tz’u Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos, que foi, em última análise, o grande responsável pela popularização do I Ching.

Sobre o Budismo, o I Ching não exerceu quase nenhuma influência. Se ocasionalmente encontramos algum termo do I Ching nos tratados Budistas é porque se trata de polêmicas com os Confucionistas ou Taoístas.

• O I Ching exerceu uma grande influência sobre o Confucionismo, uma menor, porém significativa, influência sobre o Taoismo, e praticamente nenhuma influência sobre o Budismo.

Os Principais Comentaristas do I Ching no Ocidente
Considera-se que a primeira notícia sobre o I Ching na Europa apareceu no prefácio de um livro publicado em Paris em 1681, entretanto, foi só em 1736 que o missionário jesuíta Regis realizou a primeira tradução do I Ching para o latim. Iniciava-se assim um período de 150 anos que se caracterizou pelo aparecimento de várias traduções incompletas e pelo desenvolvimento de várias teorias fantásticas. Na atualidade, esses trabalhos perderam totalmente seu valor acadêmico e só podem ser mencionados em relação à história do estudo do I Ching no Ocidente.

O segundo período se caracterizou pelo aparecimento de várias traduções completas do texto, das quais vale a pena destacar a de P.L.F. Philastre (Chou I: I Ching ou Livro das Mutações da dinastia Chou, 1885-1893) e a de James Legge (Os Livros Sagrados da China. Os textos do Confucionismo: o I Ching, 1882). Philastre foi o primeiro tradutor que compreendeu a necessidade de levar em consideração os comentários dos comentaristas chineses. Ao longo de todo o texto, Philastre inclui os comentários de Ch’eng I e de Chu-Hsi que são os dois mais importantes comentaristas da escola Sung. Ao contrário de Philastre, a tradução de Legge contém um longo prefácio e introdução e inúmeros comentários ao pé da página espalhados pelo texto, onde se pode perceber o profundo conhecimento que Legge tem do assunto através das fontes originais. Esse tamanho conhecimento foi possível porque Legge traduziu praticamente todos os livros importantes da China Antiga o que lhe deu uma erudição que nenhum outro tradutor ocidental pôde ostentar. A tradução e os comentários de Legge são, sem sombra de dúvida, os melhores desse período e servem como material de referência até os dias de hoje.

A tradução de Richard Wilhelm - que é o texto mais utilizado no Ocidente- é o grande acontecimento do terceiro período de estudo do I Ching na Europa. Com certeza, o autor tinha absoluta consciência da grande qualidade do seu trabalho em relação ao trabalho de seus predecessores e sua tradução com comentários inaugura um novo estágio no estudo e na interpretação do I Ching no Ocidente, muito embora ele inclua freqüentemente pontos de vista e conclusões que são alheias ao espírito do texto adivinatório - talvez, justamente, por ter assumido uma atitude de comentarista mais do que de tradutor.

Por mais breve que seja, não se pode encerrar uma síntese da história do I Ching no Ocidente sem mencionar o nome de Hellmut Wilhelm. Seguindo a tradição do seu pai, Hellmut produziu a maior parte do que as atuais gerações sabem em relação ao I Ching. Seus grandes trabalhos são quinze Vortrage ou Conferências. O primeiro grupo de conferências, realizadas em alemão para amigos e estudiosos em Pekim durante a II Guerra Mundial, foi traduzido para o inglês por Cary F. Baynes em 1960. Desde aquela época as Oito Conferências, como passaram a se chamar, tem sido lidas junto com a tradução do I Ching de seu pai. O segundo grupo de conferências de Hellmut Wilhelm foram realizadas nos famosos Encontros Eranos, iniciados por Olga Frök-Kapteyn (1881-1962) em 1933. O grupo de sete conferências foi proferido em alemão, a exceção da última conferência que foi proferida em inglês, entre os anos de 1951 e 1967.

Mais recentemente, deve-se considerar uma tradução que veio a se tornar a mais importante ferramenta na interpretação do I Ching. Trata-se da primeira tradução completa com concordância, resultado do trabalho de estudo e pesquisa desenvolvido pela Fundação Eranos durante mais de cinqüenta anos. O Projeto I Ching, dirigido por Rudolf Ritsema e Stephen Karcher, foi criado com o propósito de “redescobrir” a linguagem oracular e a prática da advinhação como meio de comunicação com o “invisível” - o mundo de imagens descrito através dos mitos e sonhos, das viagens xamânicas e do mistério dos cultos.

Por último, uma menção muito especial sobre a reveladora tradução com comentários do mais antigo manuscrito encontrado até agora - os manuscritos em seda, descobertos em 1973 no túmulo Han # 3 em Ma Wang Tui, Changasha, Honan - realizada por Edward L. Shaugnessy. Além das consideráveis diferenças em relação ao texto conhecido até agora no Ocidente, na versão Ma Wang Tui constam cinco novos comentários - três deles com citações diretas de Confúcio - que permaneceram desconhecidos por mais de dois mil anos.

• As referências sobre todas as fontes bibliográficas consultadas na composição desta postagem encontram-se na seção "Bibliografia".

Os Fundamentos do I Ching


Ora o obscuro (Yin), ora o luminoso (Yang): isso é o Tao” (Hsi Tz’u Chuan, Primeira Parte, capítulo V, parágrafo 1).

O Conceito  "Mutação- Imutável"
Quando se trata de penetrar no conceito de mutação - que deu nome ao I Ching e que determina seu sistema de pensamento - o que vem imediatamente à mente é o aforismo pantha rei ou tudo flue, usado por Heráclito de Éfeso em torno de 500 a.C. e que foi o fundamento do seu sistema filosófico. Entretanto, apesar do aparente paralelismo, um exame mais detalhado mostra as diferenças características dos dois mundos. Heráclito, que afirmava que a vida é o movimento que se desenvolve através do conflito dos opostos, também concebia uma ordem harmônica universal, o Logos, que ordena o Caos. Mas, para os chineses os dois princípios, mutação e imutabilidade são apenas dois aspectos do mesmo princípio. Um texto apócrifo antigo explica este ponto claramente.

“A palavra I tem três significados: o fácil, a mutação e o imutável. Sua característica é o fácil. Sua irradiação penetra as quatro direções; simplesmente e facilmente estabelece as diferenças: através dele o Céu brilha. O sol e a lua, as estrelas e as regiões do zodíaco são distribuídas e ordenadas de acordo com ele. A alma que o permeia não tem porta; o espírito que o protege não tem entrada. Sem esforço, simples e sem erro: isto é o fácil. Seu poder é a mutação. Se o Céu e a Terra não mudassem, esse poder não poderia penetrar em nenhum lugar. A interação dos cinco estados de mutação - madeira, fogo, terra, metal e água - alcançaria a quietude e a alternância das quatro estações cessaria. O príncipe e o ministro perderiam seus galões e todas as relações seriam trocadas; o que deveria decrescer, cresceria; e que deveria ordenar, desordenaria. Essa é a mutação. Seu estado é imutável. Que o Céu se encontra acima e a Terra abaixo; que o senhor se vira para o Sul e o vassalo para o Norte; que o pai permanece sentado e o filho se curva: isso é o imutável”.

• O ideograma I, que representa a base do modelo cosmogônico do I Ching, não consta nem no texto adivinatório, nem nos primeiros comentários, embora apareça mais de 50 vezes no Hsi T’zu Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos. Apenas os comentários do texto adivinatório começam a destilar seu conteúdo, tornando possível fazer dos significados dessa palavra a chave para penetrar no sistema subjacente ao I Ching.

O primeiro significado literal que o ideograma I nos revela é o fácil, o simples, o que é disposto naturalmente. É importante enfatizar esse ponto porque esclarece a diferença entre o sistema do I Ching apresentado pelos antigos soberanos de Chou e as versões precedentes. Perde-se a chave de acesso ao sistema se a princípio procuramos algo misterioso e obscuro nele. O livro começa por aquilo que todo mundo vê e que todo mundo sabe.

Que essa é a atitude correta pode ser facilmente comprovado pelas circunstâncias históricas das quais a nova forma de sistema se originou. A religião totemística e matriarcal dos Shang, que controlava seus fiéis através do medo era alheia aos primeiros soberanos de Chou. Igualmente alheia era a penumbra indefinida que controlava as forças obscuras da psique humana, permitindo que elas se manifestassem através do sacrifício de animais. O espírito dos soberanos de Chou espelha uma mais simples e mais clara imagem criada pela sua associação com a vida vegetal, isto é, com a agricultura; suas concepções não eram primitivas como se podia esperar, mas o resultado de um processo de purificação. Na hierarquia dos instintos, a razão - o instinto do coração, como a chamam os chineses - assume a liderança. Assim, a força obscura, reconduzida ao lugar que lhe corresponde não mais pode aspirar à supremacia. Todavia, essa tendência espiritual dos primeiros soberanos de Chou também se manifesta no seu sistema social e político. A vida adquire suas formas daquilo que é dado pela Natureza, daí que seu ordenamento pode ser conhecido e deuses e demônios, os fantasmas sinistros que podem introduzir um elemento irracional na vida, começam a ser dominados. Esse é o significado especial da estrita proibição do consumo de álcool imposta pelos primeiros soberanos de Chou.

As situações descritas no texto adivinatório do I Ching reproduzem as coisas fundamentais da vida - o que acontece a todas as pessoas todos os dias, e o que é simples e fácil de se entender. Esse ponto de vista fica bem claro nos comentários do texto adivinatório, os quais ajudam, não somente a apresentar e desenvolver o velho sistema, como também, de acordo com a missão cultural e social do Confucionismo, a demonstrar sua eficiência. Uma e outra vez a ênfase recai sobre a simplicidade e a lucidez como a única passagem para o sistema.

"O Criativo conhece através do fácil. O Receptivo é capaz de agir através do simples. Aquilo que é fácil, é fácil de conhecer. Aquilo que é simples, é simples de seguir. Aquele que é fácil de conhecer conquistará a felicidade. Aquele que é fácil de seguir conseguirá encargos. Aquele que possui a adesão, poderá perdurar, por longo tempo; aquele que possui tarefas, poderá tornar-se grande. A duração é a propensão do sábio; a grandeza é o campo de ação do sábio. Através do fácil e do simples pode-se aprender as leis do mundo inteiro. Na compreensão das leis de todo o mundo está a perfeição. (Hsi Tz’u Chuan Primeira Parte, capítulo I, parágrafos 6, 7 e 8).

Através dessa passagem pode se alcançar a essência do texto adivinatório do I Ching. Os reflexos dos simples fatos fundamentais de nossa vivência nos permitem o imediato reconhecimento das mutações constantes. Para a mente simples, a coisa mais característica dos fenômenos é seu dinamismo. É o pensamento abstrato que retira dos acontecimentos sua dinâmica continua e os isola como unidades estáticas. Se se procurasse um paralelismo a este aspecto da mutação no pensamento ocidental seria a incorporação do conceito de tempo. Dentro desse conceito tudo está em estado de transformação.

• A cada momento o futuro se torna presente e o presente se torna passado.

O conceito chinês de mutação preenche a categoria de tempo com conteúdo. Foi se formando pela observação dos fenômenos naturais: o curso do sol e das estrelas, a passagem das nuvens, o fluir da água, a alternância do dia e da noite, a sucessão das estações. E de Confúcio diz-se que parando na beira do rio, exclamou: “Como este rio, tudo flue incessantemente, dia e noite” (Lun-Yü, IX, 16). O conceito se formou principalmente a partir da capacidade de procriação da vida. A mutação é a progenitora de todos os progenitores; a abundância transbordante da força que permanentemente se renova a si mesma e que nunca se detém nem cessa.

• É somente na constante mutação que a vida pode ser vivida. Se é interrompida, o resultado não é a morte - que na realidade é um aspecto da própria vida - mas a corrupção da vida.

Esta percepção é uma característica fundamental do conceito chinês de mutação. O oposto de mutação não é nem repouso nem pausa, pois esses são aspectos da mutação. A idéia de que o oposto de mutação é corrupção e não ausência de movimento mostra claramente a diferença com a categoria ocidental de tempo. O oposto de mutação no pensamento chinês é o crescimento do que deveria decrescer e a desordem do que deveria ordenar; ou seja, mutação desordenada. Mutação não é simplesmente movimento, já que seu oposto também é movimento. O estado de imutabilidade absoluta é de uma tal abstração para o chinês da época em que foi concebido o I Ching que ele era incapaz de imaginá-lo.

• Mutação é movimento de acordo com as leis naturais em oposição ao movimento que vai contra as leis naturais.

O passo importante dado pelo I Ching é a aplicação desse conceito de mutação às formas orgânicas da vida. E com esse passo, o livro se torna importante no sentido filosófico; o insight de que apenas o homem e os grupos sociais podem-se incluir a si mesmos nessa categoria de mutação justifica a grande expectativa gerada pelo I Ching. Perceber que o homem se movimenta e atua, que cresce e se desenvolve, isso não é uma grande descoberta; mas descobrir que esse movimento e esse desenvolvimento acontece obedecendo a um modelo que é regido pela lei da mutação - da qual não há escapatória - essa sim é a grande sabedoria que tem nutrido a integridade e lucidez da filosofia da China.

Não é fácil perceber de forma concreta o desenvolvimento do princípio que é inerente a todos os acontecimentos. O conceito de mutação não é um princípio externo e normativo impresso sobre todos os acontecimentos; é uma tendência interior de desenvolvimento natural e espontâneo. Desenvolvimento não é um destino que vem de fora ao qual deve-se silenciosamente se submeter, mas uma indicação mostrando a direção em que devem ser tomadas as decisões. Desenvolvimento não é uma lei moral que as pessoas são obrigadas a obedecer, mas é uma espécie de guia através da qual podemos fazer a leitura dos acontecimentos. Permanecer na corrente desse desenvolvimento é uma imposição da Natureza; aceitá-la e seguí-la é uma questão de responsabilidade e livre arbítrio.

Quando essa lei de mutação é aplicada à evolução do indivíduo, de um grupo social, ou de uma época, a série de hipóteses que estamos acostumados a usar para explicar os eventos cai por terra. O princípio implica a ausência de interior e exterior, conteúdo e forma. Está implantado no coração do homem, é ativo e discernível. Da mesma forma, é ativo tanto nos grupos sociais quanto em todas as épocas. Assim, não apenas encarna mas também representa a alma do grupo e o espírito da época. A universalidade do seu poder inclui todas as dimensões; cada semente que é plantada cresce e amadurece dentro do raio de sua influência.

O movimento de mutação assim concebido nunca é unidimensional. Se nos atermos a uma imagem, o movimento cíclico seria a melhor forma de representá-lo. Os comentaristas mais recentes tem feito uso freqüente dessa imagem, mas a rigidez que ela sugere é alheia ao livro em si. Entretanto, a idéia de um movimento que retorna ao ponto de partida é, com certeza, básica. Pode ter sido derivada da órbita dos corpos celestes ou do curso das estações. Para o chinês antigo a própria morte significava um retorno. Mas nessa imagem está implícita muito mais a idéia de unidade ou totalidade do que periodicidade. A noção de progresso que o pensamento moderno incorporou à idéia de movimento cíclico pela imagem do espiral é alheia ao conceito antigo de mutação. O julgamento de valor contido nessa idéia mais recente não condiz com a imagem feita de acordo com a Natureza. E a tentativa de exaltar o novo às expensas do velho, o futuro às expensas do passado, também é alheia ao pensamento chinês. A ênfase recai exclusivamente na capacidade de permanecer dentro do fluxo da mutação. O fato de que o movimento retorna ao seu ponto de partida evita que ocorra a dispersão que o movimento unidimensional não pode prevenir. O infinito é desta forma trazido para dentro dos confins do finito, onde pode servir de ajuda ao homem.

Assim, nos aproximamos do terceiro aspecto associado ao conceito I: o imutável. Comentários antigos contém a definição paradoxal: mutação; isso é o imutável. Nos comentários mais recentes do texto divinatório encontra-se o sentido dessa palavra em oposição à palavra perigo. Perigo é o desconhecido, o misterioso, do qual pode resultar tanto o infortúnio quanto a boa fortuna. Segurança é o perfeito conhecimento do caminho correto a ser seguido, a certeza de que os eventos estão se desenvolvendo na direção correta.

Os primeiros comentaristas tenderam a associar essa segurança, assim como a imutabilidade, às relações sociais. Costumava-se dizer que o pai está sentado e o filho se curva ante ele. Isso mostra como eles eram zelosos de sua própria posição social. Todavia, essa concepção não estava desprovida de dinamismo, pois o filho que hoje se curva perante seu pai no dia de amanhã será um pai que receberá as homenagens do seu filho. Desta forma essas posições sociais são estáticas e fixas apenas na sua relação intrínseca, e como pontos de referência na corrente dos eventos são indispensáveis. As diferenças de grau entre as posições relativas são sem dúvida tão importantes como a relação em si mesma. Sua oposição introduz um princípio regulador no processo de mutação. Obviamente, as possibilidades decorrentes dessas posições são numerosas, sendo a relação entre o pai e o filho apenas um modelo que se aplica a inúmeras situações. A ampla rede de relações - a qual, no que se refere à vida em grupo é, naturalmente, de caráter social - dá a mutação sua imutabilidade. Mas, se estudarmos a mutação no campo pessoal ou no campo cósmico, outras relações capazes de se tornar a medida dessa imutabilidade são necessárias, assunto que será amplamente analisado na exposição do princípio dos opostos.

O I Ching ainda aborda a imutabilidade sobre outro ângulo. No texto divinatório está implícito e nos comentários posteriores se discute com grande detalhe. Nesses textos a imutabilidade da mutação se corresponde com a virtude humana de segurança. Pode-se apertá-la, segurá-la, contar com ela. A mudança não é algo que possa acontecer bruscamente ou irracionalmente. Tem seu curso fixo, imutável, para o qual todos os eventos tendem a se desenvolver. Da mesma forma com que contamos com que o sol sairá amanhã ou que a primavera sucede o inverno, podemos ter certeza de que o processo de mutação chega muito perto do Caminho Permanente (Ch’ang Tao) de Lao-Tzu. Na verdade o termo Tao é usado consideravelmente nas camadas mais recentes do texto. Aqui também Tao é a força ativa do Universo, tanto no todo quanto nas partes.

“O Livro das Mutações contém a medida do Céu e da Terra; por isso ele possibilita a compreensão do Tao (Caminho) do Céu e da Terra... Ao tornar-se semelhante ao Céu e a Terra, o homem não entra em conflito com eles. Sua sabedoria abrange todas as coisas e seu Tao traz ordem ao mundo inteiro. Por isso ele não comete erros..... No livro se encontram as formas e os domínios de todas as configurações no Céu e na Terra, de modo que nada lhe escapa. Nele todos os seres se completam e nenhum lhe falta. Por isso, por seu intermédio, podemos penetrar no Tao do dia e da noite, de modo a compreendê-lo. O espírito, portanto, não está vinculado a nenhum lugar específico, nem o Livro das Mutações a qualquer forma em particular.” (Hsi Tz’u, Chuan Primeira Parte, capítulo III, parágrafos 1 a 4).

Assim, o imutável, para o qual a palavra Tao é aqui designada, é um atributo inerente ao conceito de mutação, e inclusive implica na idéia de estabilidade e abrangência. A mutação opera tanto no grande quanto no pequeno e pode ser detectada tanto nos acontecimentos cósmicos quanto no coração dos homens. Da compreensão de que o Tao abrange tanto o macro quanto o microcosmos, o I Ching deriva a idéia de que o homem superior ou chun-tzu também é o centro dos acontecimentos; o indivíduo que está consciente de sua responsabilidade está à altura das forças cósmicas do Céu e da Terra. É isso que se quer significar através da idéia de que a mutação pode ser influenciada. É claro que tal influência só pode ser possível se se movimenta na direção da mudança e nunca contra ela. Como cada semente se desenvolve através da mutação, pode ser possível introduzir no fluxo da mutação uma semente plantada pelo homem. E como o conhecimento das leis da mutação permitem saber o caminho certo para plantar tal semente, uma grande influência efetiva torna-se possível. E não é só isso, mas as sementes plantadas podem ser influenciadas no seu desenvolvimento, e quanto mais se aproxima a época de plantar maior a influência. Perceber o momento de sua germinação significa se tornar o senhor do destino da semente.

Desde esse ponto de vista, que concede à pessoa consciente uma considerável influência no curso das coisas, a mutação deixa de ser algo insidioso e intangível, para se tornar uma ordem orgânica de acordo com a natureza do homem. Dentro de determinados limites ele não é apenas senhor do seu próprio destino, como também fica em posição de interferir consideravelmente no curso dos eventos além do seu próprio campo. Porém, é sua obrigação reconhecer esses limites e permanecer dentro deles. E é para propiciar esse reconhecimento, colocando a sua disposição a experiência que vem dos tempos antigos e dos homens sábios, que o I Ching foi criado.

O Princípio Fundamental: Grande/Pequeno
Foi mencionado o elemento de imutabilidade no princípio de mutação e citado o paradoxo: mutação; isso é o imutável. Dentro da incessante mutação, imediatamente evidente aos sentidos, essa imutabilidade introduz um princípio de ordem garantindo a duração do fluxo e refluxo dos eventos. Quando o homem compreende esse princípio, ele abandona a condição de identificação irreflexiva com a Natureza e aparece a consciência reflexiva. Se tornar consciente do que é imutável no fluxo da Natureza e da vida é o primeiro passo do pensamento abstrato. O reconhecimento da regularidade no curso dos corpos celestes e na sucessão das estações proporciona uma base para o ordenamento sistemático dos acontecimentos, e esse reconhecimento torna possível o calendário. Da mesma forma a concepção de imutabilidade na mutação proporciona a primeira garantia para a ação consciente. Esse conceito liberta o homem, pelos menos aparentemente, da submissão à Natureza e o coloca numa posição de responsabilidade.
Simultaneamente com esse conceito, um sistema de relações se incorpora à idéia do mundo. A mutação não é algo irracional, caótico e indeterminado, pois sua manifestação é relativa, algo ligado a pontos fixos e a uma determinada ordem. Na idéia do mundo encontrada no texto divinatório do I Ching esse conceito de imutabilidade na mutação é incorporado pela introdução do conceito de opostos. Dois pontos antitéticos estabelecem os limites fixados para o ciclo de mutação. Usando a terminologia ocidental, poderemos redescobrir nesse sistema a introdução da categoria de espaço, a qual, através das suas coordenadas, empresta à idéia de mutação a conotação de imutabilidade. Para os chineses antigos o espaço é sempre tri-dimensional. Junto com a altura e a largura, a profundidade foi reconhecida desde o começo. Na verdade, na antigüidade, a profundidade do espaço recebia muito mais atenção do que a superfície.

A antítese acima e abaixo não é encontrada apenas no I Ching, mas também a encontramos no Shu-Ching (Livro da História) e no Shih-Ching (Livro dos Poemas), cuja tradição vai além da dinastia Chou, e especialmente nas inscrições dos oráculos de ossos e nos bronzes primitivos. A antítese acima e abaixo, entretanto, implica muito mais do que a simples definição de suas posições relativas. Para começar, uma relação entre as suas posições é determinada: a relação de correspondência. Acima e abaixo não são duas forças isoladas; pelo contrário, estão absolutamente interligadas e cada uma influencia a outra. Isto fica muito claro nas inscrições dos oráculos de ossos e nas velhas canções que revelam sua origem antiga pelo fato de que o que está abaixo precede o que está acima. Nesses testemunhos, freqüentemente é encontrado junto com a relação antitética acima e abaixo uma terceira palavra que caracteriza essa interação: acima e abaixo permanecem em harmonia, e acima e abaixo se sucedem mutuamente. Assim, temos provas documentadas de que este conceito existia no período Shang e, indubitavelmente, é muito mais antigo ainda.

A antítese acima e abaixo tem sido exemplificada das mais variadas formas. De acordo com o caráter dos documentos que nos mostram a antítese na sua forma mais primitiva a relação dos opostos é ,freqüentemente, social. Acima está o soberano e abaixo o povo. Também encontra-se uma oposição cósmico-religiosa - que pode muito bem ser uma forma ainda mais antiga de polaridade - que é a antítese Céu e Terra, sobre a qual muito provavelmente a polaridade social se desenvolveu. Neste par de opostos, o Céu é geralmente representado pela palavra t’ien que ainda hoje em dia é usada neste sentido - embora para a Terra se usasse o termo mais antigo t’u- que posteriormente foi substituído pelo termo ti.

Aqui penetra-se no campo das mais antigas instituições religiosas da China. O conceito de Céu no sentido religioso é, sem dúvida, anterior à dinastia Shang. Já nos tempos da dinastia Hsia, o Céu (t’ien) significava não apenas o firmamento mas também o poder criativo do Céu. Na terminologia ocidental esta palavra contém o mais antigo conceito chinês de Deus. Até que ponto naqueles tempos primitivos esse conceito incorporava um aspecto antropomórfico não se pode saber. Do caráter escrito pode-se inferir a grande importância dos atributos de vastidão e grandeza; isto é, a onipresença e a onipotência do Poder Superior Criativo. Muito cedo, entretanto, um elemento pessoal foi incorporado a esse conceito. A instituição do sacrifício para esse Poder não pode ser entendida de nenhuma outra forma. Muito cedo, talvez na dinastia Hsia, mas com absoluta certeza no período Chou, esse elemento pessoal adquiriu forma concreta: o mais remoto e o mais reverenciado ancestral foi equiparado ao Céu. Isto aconteceu, não tanto para criar uma imagem pessoal de Deus, mas para dotar à relação com esse Deus de todas as qualidades que resultam naturalmente da reverência ao progenitor e da idéia de continuidade da vida. O conceito de um pai no Céu, que é nosso criador, é então apresentado muito concretamente. Todavia, a equiparação do ancestral com o Céu não representou uma personificação de Deus, como se depreende do fato de que até hoje não se encontrou nenhuma imagem da divinidade da época da China Primitiva.

Contrastando com a cultura Hsia, a cultura Shang mostra uma estrutura religiosa mais complexa. Com o advento dos Shang, muitas concepções divergentes foram incorporadas à idéia chinesa do mundo. Os Shang estavam mais fortemente ligados às figuras totémicas do que seus antepassados. A mãe permanece mais perto deles do que o pai; por isso não é de se estranhar que durante a dinastia Shang se desenvolvesse o conceito antropomórfico de Deus mais ligado a palavra ti, que denota tanto Deus quanto o soberano divino. Mais tarde, esta palavra se incorporou ao conceito de Imperador ou Huang-ti.

Dessa forma, embora a idéia de Céu pareça ter sido baseada em concepções desenvolvidas pelos seus predecessores, os Shang foram os primeiros a complementar esse conceito com sua antítese e, conseqüentemente, a criar a oposição entre o Céu e a Terra tão característica do cosmos chinês.

Percebe-se, pois, que a antítese e a interação de acima e abaixo e de Céu e Terra, com todos os seus significados, encontram-se registradas na mais antiga literatura chinesa. A oposição desses dois conceitos é desenvolvida no sistema do I Ching, oferecendo a estrutura na qual o princípio ordenador está subjacente. Oposição aqui não significa rigidez nem um centro em torno do qual o movimento cíclico gira, mas um campo magnético ou uma força nuclear, para utilizar um termo mais moderno, que determina a mudança. Assim, olhada sob um outro aspecto, essa oposição encontra-se na antítese entre os sexos. A Terra feminina contrasta com o Céu masculino, a Terra mãe se opõe ao Céu pai. Obviamente, a antítese entre o masculino e o feminino é muito antiga. Também é encontrada em inscrições oraculares e em outras literaturas cujas formas simbólicas são o homem e a mulher do mundo animal. Esses significados, particularmente o da palavra fêmea, mais tarde tiveram uma importância fundamental na filosofia chinesa - como nos mostra a filosofia de Lao-Tzu, por exemplo.

Desde uma época muito antiga, pares de animais específicos representavam a antítese dos sexos. Encontramos a antítese expressada desta forma também no texto divinatório do I Ching: o símbolo do princípio masculino é o dragão e o do princípio feminino, a égua. O par dragão - égua, que parece tão estranho aos olhos de nossos dias, pode ser explicado pela mitologia. Esses animais na verdade são os símbolos da tensão desenvolvida entre os sexos, originando-se na antítese fundamental das forças cósmicas que representam a origem da vida. Mais tarde, no I Ching, essa tensão dos opostos encontra-se expressada de uma forma mais abstrata através de conceitos que estão bem afastados dos motivos mitológicos e que representam a essência ativa das duas posições. Esse par de conceitos são Chien e K’un (Hexagrama 1 e 2). Essas duas palavras não são nada fáceis de se traduzir e muitos sinólogos simplesmente as deixaram sem tradução. Provavelmente o Criativo e o Receptivo sejam os termos que mais se aproximam do seu significado original, porque deixam bem clara a idéia do atuante e do atuado, contida nesse conceito. Essa relação entre Ch’ien e K’un é fundamental, mesmo no texto divinatório do I Ching. Nos comentários do texto adivinatório há muita teorização em torno dela:

“O Criativo e o Receptivo são o verdadeiro segredo do Livro das Mutações. Como o Criativo e o Receptivo se apresentam de forma completa, as mutações também estão situadas entre eles. Se o Criativo e o Receptivo fossem destruídos nada haveria em que se pudesse ver as mutações. E se as mutações já não fossem mais vistas, os efeitos do Criativo e do Receptivo também, pouco a pouco, cessariam.” (Hsi Tz’u Chuan, Primeira Parte, capítulo XII, parágrafo 3).

Entretanto, a expressão máxima da polaridade é a oposição do yin e do yang. Esses dois conceitos são também muito antigos e sua interpretação como forças opostas começou na China pré histórica, o princípio feminino precedendo o princípio masculino. Mas aqui também muitas gerações trabalharam no conteúdo desse par de opostos e foi somente no último terço da dinastia Chou que eles alcançaram seu atual significado. Aos dois caracteres que hoje expressam esses dois conceitos faltava-lhes na antiguidade o classificador que significa a ladeira de uma montanha. Originariamente yin tinha apenas o ideograma nuvem e assim significava nublado ou obscuro. Ademais, a idéia da água como fonte de vida está implícita nessa imagem. O caráter yang mostra o rabo de um boi ou uma flâmula agitando-se no sol, significando o resplendor de algum objeto brilhando na luz, algo luminoso. O poder de comando que emana desse estandarte como símbolo do grau de superioridade está também contido nessa imagem e nunca foi perdido. Com o classificador significando a ladeira de uma montanha, yin passa a significar o lado sombreado de uma montanha, ou seja, o lado norte de uma montanha; enquanto que o yang representa o lado ensolarado da montanha, o lado sul.

• Os dois termos significando luminoso (yang) e obscuro (yin) não constam nem no texto adivinatório nem nos primeiros comentários, aparecendo pela primeira vez no Hsi T’zu Chuan ou Comentário aos Julgamentos Anexos, tornando explícito o que estava implícito.

“O Mestre disse: o Criativo e o Receptivo são realmente o portal para as mutações. O Criativo é o representante das coisas luminosas; o Receptivo das obscuras. Ao unirem suas naturezas, o obscuro e o luminoso dão a forma ao firme e ao maleável. Assim os relacionamentos do Céu e da Terra tomam forma e o homem se põe em contato com a natureza dos deuses luminosos.” (Hsi Tz’u Chuan, Segunda Parte, capítulo VI, parágrafo 1).

A filosofia chinesa não deixou de prestar atenção às abundantes imagens desse tipo. Tsou Yen, um filósofo do século III a.C., extraiu sua própria concepção do cosmos dessas imagens e muitas de suas idéias se incorporaram à literatura apócrifa do I Ching. A forma simbólica assumida por esse par de forças nas especulações de filósofos posteriores deu lugar a um tipo de dualismo cósmico gnóstico que se desenvolveu consideravelmente nos séculos posteriores.

Entretanto, a ênfase recai sobre as figuras lineares do I Ching. As sessenta e quatro situações básicas da vida são representadas no livro por figuras formadas por seis linhas; ou seja por sessenta e quatro hexagramas. A linha individual carrega a tensão da oposição que foi descrita anteriormente. A tensão é expressada pela linha e a situação é definida numa combinação sextupla de forças opostas. Desta forma, nas seis posições do hexagrama encontram-se linhas de dois tipos: uma linha inteira representando o grande (ta) e uma linha dividida no meio, representando o pequeno (hsiao).

A origem dessas linhas provocou inúmeras controvérsias entre os estudiosos do I Ching. Uma explicação bastante provável é a de que elas são uma conseqüência do método de consulta ao Oráculo. O veredito do Oráculo era obtido com a ajuda de talos de milefólio e teria sido muito natural usar as varetas para representar graficamente as respostas. Aparentemente, o método mais sofisticado de consulta ao Oráculo descrito nos estratos mais recentes do texto - é ainda praticado nos dias de hoje - não era usado na época primitiva. No começo, o método parece ter sido uma espécie de jogo da sorte ou azar onde os talos longos significavam uma resposta positiva e os talos curtos uma resposta negativa. Então, por causa do equilíbrio das duas forças cósmicas fundamentais, e também porque na concepção antiga o Céu era representado pelo número um e a Terra pelo número dois, dois talos curtos foram equiparados a um talo longo simbolizando desta forma o equilíbrio entre o grande e o pequeno.

Nos comentários do texto adivinatório a linha inteira foi denominada de o firme (kang) e a linha partida de o maleável (jou). Assim, esses atributos definem mais um aspecto da oposição. Nos estratos mais antigos do Livro, esses são os nomes usados para definir as duas forças fundamentais do mundo manifestado:

“O firme e o maleável são as imagens do dia e da noite” (Hsi Tz’u Chuan, Primeira Parte, capítulo II, parágrafo 4).

A redução das duas forças fundamentais às figuras do I Ching as coloca imediatamente dentro do processo de mutação e transformação. Agora não são mais forças abstratas e remotas, mas elas também estão sujeitas a alterações e portanto produzem mutações e transformações.

“Os santos sábios formaram os hexagramas para que se pudessem perceber neles os fenômenos. Eles acrescentaram os Julgamentos para indicar a boa fortuna e o infortúnio. A medida que as linhas firmes e maleáveis deslocam uma a outra, surgem a mutação e a transformação”. (Hsi Tz’u Chuan, Primeira Parte, capítulo II, parágrafos 1 e 2).

Desta forma as figuras lineares refletem as imagens do mundo dos fenômenos uma vez que as linhas inteiras se transformam em linhas partidas e as linhas partidas mudam para linhas inteiras. Cada uma das duas linhas possue dois estados de ser: um estado de repouso e um estado de movimento que representam os diferentes aspectos do seu caráter.

A linha inteira, pois, tem unidade na sua qualidade e é unidimensional em seu movimento. É a imagem da mente do homem. A linha partida mostra o movimento vegetativo de abrir e fechar e por isso simboliza a alma do homem. A maneira pela qual se processa o desenvolvimento das linhas individuais é decisiva para o sistema do livro. A linha inteira se estica nas pontas, se afina no meio, e acaba se dividindo em dois, formando a linha partida. A linha partida se estica para o meio, as duas partes se aproximam, e acabam se fundindo formando a linha inteira. Assim, no processo de transformação e mutação, essas linhas se convertem nos seus opostos. Consequentemente, cada componente da situação pode se converter no oposto e apontar um novo elemento à situação como um todo.

Mais tarde, Lao-Tzu sintetizou essa idéia numa curta frase: “O retorno é o movimento do Tao” - isto é, a mudança dos opostos. O padrão dos eventos foi se tornando cada vez mais complexo e obviamente apenas linhas inteiras e partidas não seriam capazes de representá-lo adequadamente. Com o aumento da complexidade dos eventos - em conseqüência do desenvolvimento do pensamento chinês - foi crescendo a necessidade de um sistema mais complexo que procurasse ordenar a seqüência aparentemente aleatória dos fenômenos do mundo. Foi assim que surgiram os símbolos (kua) e seus julgamentos (tzu).



I Ching: O Livro de Oráculos


“Quando o homem superior empreende algo, considera as mutações e medita sobre o Oráculo” (Hsi Tz’u Ch’uan, Primeira Parte, capítulo II, parágrafo 6).

O que é a Adivinhação?
As civilizações antigas, tanto no Oriente quanto no Ocidente, usavam a adivinhação e os Oráculos para se comunicar com os poderes invisíveis. Os sacrifícios oferecidos aos espíritos e aos Deuses não eram uma forma de suborno ou apelo como pode, a primeira vista, parecer a um observador ocidental: eles abriam os canais de comunicação entre os homens e os espíritos.

A idéia de que palavras, coisas ou fatos podem transformar-se em agouros que abrem o canal de comunicação com o mundo dos espíritos está baseada na forma em que a psiquê trabalha - isto é, a cada sinal, conflito ou problema que o indivíduo experimenta, um espírito tenta se comunicar com ele. Cada embate com um problema é uma abertura para esse espírito, embora seja combatido pelo ego que quer impor sua vontade no mundo a todo custo. A adivinhação dá ouvidos a aquilo que o ego rejeitou trazendo à tona o complemento oculto ou a sombra da situação e liga o indivíduo aos mitos e aos espíritos que se movimentam por trás dele. Esse processo tende a modificar consideravelmente a forma em que o indivíduo vê a si mesmo, sua situação e o mundo em volta dele.

As pesquisas dos sistemas adivinatórios das culturas tribais mostram que esse processo era - e ainda é - usado para fornecer informação sobre os problemas e decisões que o método racional ou as regras de conduta não resolvem. Nesses casos, é o espelho obscuro que dá as respostas, o lugar onde o espírito de um indivíduo pode conversar com todos os outros espíritos do mundo. Esses sistemas são freqüentemente dirigidos por um animal-mago cujos misteriosos símbolos oferecem uma alternativa às leis e regulamentos da sociedade. Algum tipo de procedimento baseado no acaso abre um canal através do qual o espírito se expressa escolhendo um dos símbolos disponíveis. Tal como o tambor e a dança do xamã, esse símbolo pode falar ao indivíduo em vários planos, iniciando o processo criativo que, segundo a tradição, completa a atividade incessante do Céu. Isto é a essência da religião. Um diagnóstico final e um plano de ação surge da interação criativa entre o símbolo, o consulente e o adivinho, sobre os quais preside o plano espiritual. Essa interação invalida as velhas histórias que o indivíduo conta a si mesmo e dá lugar a novas histórias mais eficientes. Esse processo orienta o indivíduo a atuar de acordo com o espírito do tempo.

Assim, a adivinhação não é uma ritual vazio ou uma crença, mas um meio de se comunicar com o plano espiritual. Os símbolos evocados estabelecem o contato entre o indivíduo e as forças por trás dele. A linguagem é a chave para esse contato. As palavras são, no dizer dos chineses, as redes que pescam o espírito do Tao.

A Consulta ao Oráculo na Antigüidade
Em primeiro lugar, o I Ching era um Oráculo; isto é, um sistema de idéias e preceitos do qual uma pessoa necessitada de orientação pode, depois de formular uma pergunta específica, receber uma resposta. A atitude mental que leva uma pessoa a consultar um Oráculo está ligada ao esforço da mente humana de descobrir um sentido e uma ordem naquilo que é aparentemente coincidência. Daí nasce nossa vontade consciente de nos inserir dentro dessa ordem, de forma que no paralelismo entre o que está dentro e o que está fora de nós, a posição e o curso de um poderão ser significativos para o outro. Essa procura é tão antiga quanto o próprio homem na Terra e a chave que abre o portal para alcançar esse paralelismo tem sido procurada nas forças da vida orgânica, especialmente na vida animal. O Oráculo de ossos de animais tem sido usado na China desdes épocas imemoriais. Em contraste com esse e outros mecanismos divinatórios é importante observar que o Oráculo do I Ching utiliza como chave para revelar os mistérios as forças da vida vegetal e não animal. O milefólio era uma planta que crescia em lugares sagrados, cujas varetas, que segundo os antigos têm um grande poder espiritual, quando manipuladas de uma certa forma davam acesso ao Oráculo. Essa distinção entre o vegetal e o animal representa não apenas uma diferença no método mas também na natureza do Oráculo. Uma outra característica que distingue o sistema oracular do I Ching dos outros é o fato de que o consulente não depende de dons mediúnicos ou da intuição de um vidente. Desta forma, não era um ser humano o consultado, mas um conjunto de textos cuja autoridade e valor estava fora de questão. Esses textos representavam para o consulente um sistema absolutamente organizado, um esquema ordenado dentro do qual um ponto a ser determinado daria sua situação momentânea e suas implicações. Esse sistema foi criado pelos homens dos tempos antigos, os que eram reverenciados pelo consulente como guardiões de uma sabedoria absolutamente ciente da ligação entre o Céu e a Terra. Era deles que o consulente extraia sua orientação. Isso significa que o Oráculo não nasceu da noite para o dia, mas deve ter sido precedido por uma idéia coerente do cosmos, um sistema definido de imagens da vida; isto é, uma visão do mundo, que foi assim depositada no I Ching.

A consulta ao Oráculo parte da aceitação de duas premissas. Primeiro: o curso dos acontecimentos obedece a uma ordem (Tao) estabelecida entre o Céu e a Terra. Segundo: somente após a harmonização com a ordem estabelecida entre o Céu e a Terra é que surgirá o plano de referência dentro do qual a ação não é apenas possível, mas desejável. Ser orientado por uma ordem superior não parecia aos chineses da antigüidade uma perda de liberdade, pois para eles nunca houve conflito entre a auto-estima e a procura de um ponto de referência fora dos limites do ego.

Que essa procura por orientação fora de si mesmo não ficasse restrita aos adolescentes - como costuma acontecer no Ocidente - e que indivíduos aparentemente donos de seus destinos procurassem os conselhos de uma fonte supra-pessoal, e que ainda esses conselhos fossem recebidos através de um Oráculo; esses fatos mostram uma consciência das limitações individuais - na realidade, das limitações da capacidade de compreender do homem de um modo geral - e parecem completamente alheios à cultura ocidental. Uma olhada nas épocas e nas personalidades que mais consultaram o Oráculo na China revela o surpreendente fato de que foi muito mais procurado nos períodos Confucionistas do que nos períodos Taoístas - estes últimos olhados como supersticiosos -; isto é, foi mais procurado nas épocas em que a ação consciente prevalecia sobre a meditação contemplativa ou o misticismo. Um indivíduo que considerasse a auto-realização como a mais importante missão de sua vida não precisava do Oráculo; para ele a sabedoria do livro seria absorvida no estado de quietude reflexiva. Porém, quando o indivíduo engajado no processo coletivo era confrontado com decisões de grande alcance, cujas conseqüências iam além da sua própria pessoa, ele apelava para as varetas de milefólio para obter uma orientação da ordem (Tao) do Céu e da Terra.

Assim, os chineses da antiguidade usavam as varetas sem nenhum tipo de restrição e os Oráculos que foram legados a nós da época pré-Confucionista mostram uma inabalável confiança nas mensagens que emanavam desse portal misterioso. Os agouros obtidos eram vistos mais como uma determinação do destino do que como diretrizes de comportamento, sendo, portanto, aceitos e seguidos sem questionamentos. O Oráculo era consultado não apenas para tomar grandes decisões de Estado mas também no campo pessoal - isto é, em assuntos tais como: saúde do soberano e seus parentes, casamentos, sonhos, caça etc. Há uma interessante tradição histórica de acordo com a qual o rei Wu, o verdadeiro fundador da dinastia Chou, consultou a carapaça da tartaruga e as varetas de milefólio antes de lançar o ataque final contra os Shang.A profecia da tartaruga foi desfavorável enquanto que o Oráculo das varetas de milefólio foi favorável e o soberano de Chou seguiu a orientação das varetas com o resultado que conhecemos. Essa história reflete a mudança de uma para outra era: o Oráculo da tartaruga sustentava o mundo Shang a quem ele devia sua grande popularidade enquanto que as varetas de milefólio estavam abertas para a nova era.

Adivinhação com a Carapaça de Tartaruga
No final do século XIX ocorreu um descobrimento que viria a ser da maior importância no desenvolvimento do conhecimento da China Antiga. Por coincidência ou não, em 1899 o famoso antiquário e paleógrafo Wang Yirong (1845 - 1900) comprou vários exemplares de “ossos de dragão” - ossos antigos usados pelos manipuladores na preparação de remédios tradicionais chineses. Wang observou que sobre os ossos que ele comprou havia desenhada uma escrita similar, porém mais antiga, à escrita dos vasos de bronze antigos com a qual ele estava tão familiarizado. Durante o ano seguinte ele conseguiu juntar uma considerável coleção de ossos inscritos que após sua morte em 1900 passou para as mãos de um amigo seu: o famoso autor Liu E (1857 - 1909). A publicação em 1903 de “A Coleção de Tartarugas de Tieyum” com mais de mil peças inscritas abriu um novo campo de estudo e pesquisa na China: o estudo dos ossos e das carapaças ou, como são chamados no Ocidente, “os oráculos de ossos”.

Hoje, quase cem anos após a primeira descoberta, bem mais do que 100.000 peças de oráculos de ossos inscritos foram descobertos em Anyang, Honan, a última capital da dinastia Shang (Yin). Do estudo das inscrições desses ossos, que são na realidade a primeira forma de escrita na China e que agora sabemos que foram utilizadas na prática da adivinhação, a história dessa dinastia emergeu da penumbra da lenda. O leque de tópicos sobre os quais se adivinhava é surpreendentemente variado. O tempo e a colheita são, é claro, os assuntos mais importantes, assim como o sacrifício aos ancestrais e os ataques aos Estados inimigos. Mas também adivinhava-se sobre saúde, a morte do soberano e seus parentes, as caçadas, os sonhos, a construção de cidades, o despacho de ordens e o recebimento de tributos. A maioria dessas inscrições mostra a data e o nome do funcionário que presidia a adivinhação, a “pergunta” feita à tartaruga, o prognóstico do soberano e uma última interpretação - quase sempre confirmando o prognóstico do soberano - o que demonstra que as inscrições eram gravadas após a adivinhação.

A Adivinhação com as Varetas de Milefólio
Sem dúvida a mais completa descrição da adivinhação com as varetas de milefólio durante a dinastia Chou encontra-se no Tso Chuan. Trata-se de uma adivinhação realizada em 535 a.C. em favor do Duque Hsiang de Wei com o propósito de determinar qual dos seus dois filhos iria sucedê-lo como Duque de Wei.

A esposa do Duque de Wei não teve filhos (homens), mas sua concubina Chou-e teve Meng Chi. Kung Cheng Tzu, o Grande Ministro de Wei, sonhou que Kang Shu - o primeiro senhor de Wei - lhe disse para nomear Yuan (o primogênito)... Chou - e teve um segundo filho e o chamou de Yuan. Meng Chi tinha uma deficiência nos pés de forma que andava com dificuldade. Kung Cheng Tzu utilizou o Chou I para decidir sobre a sucessão através das varetas de milefólio, perguntando: “Será que Yuan terá condições de governar o estado de Wei e presidir sobre seus altares?”. A continuação ele disse: “Eu gostaria de nomear Meng Chi; será que ele é capaz de governar o estado de Wei?” Ele recebeu o hexagrama Chun (Dificuldade Inicial) e o hexagrama Pi (Manter-se Unido) - isto é, nove na linha inicial. Ele mostrou o resultado ao Escriba Chao. O Escriba Chao disse: “Sublime Sucesso (Yuan-Heng); que dúvida poderia haver?” Cheng Tzu disse: “Não está se referindo ao filho mais velho?” O Escriba Chao respondeu: “Kang Chu (o primeiro senhor de Wei) chamou-o de Yuan (o primogênito) de forma que pode-se dizer que ele é o mais velho. Meng Chi não é um homem completo (por causa de sua incapacidade), não pode ser colocado no Templo dos Ancestrais e não pode ser chamado de filho mais velho. Como se isso fosse pouco, o agouro do julgamento diz: “É favorável (Li) nomear um senhor. Se a hereditariedade fosse auspiciosa que necessidade haveria de nomear um senhor? Nomear não é herdar. Ambos os hexagramas são muito claros. O filho mais novo é quem deve ser nomeado".

Este documento, de inestimável valor histórico, sugere três movimentos no processo de adivinhação com as varetas de milefólio. Em primeiro lugar, tal como acontecia com a adivinhação pela carapaça de tartaruga, o motivo da consulta era formulado através de uma pergunta em nome da pessoa para a qual a consulta era realizada. Em segundo lugar, a adivinhação envolvia dois tempos: neste caso, o primeiro tempo resultou num hexagrama básico (o hexagrama cujo julgamento é citado) e o segundo tempo numa linha desse mesmo hexagrama (a linha cujo julgamento é citado). Em terceiro lugar, como era de se esperar, os julgamentos do hexagrama e da linha do hexagrama constituíram a base do prognóstico.

Este é sem dúvida um exemplo que nos coloca o mais perto possível do método original de consulta com as varetas de milefólio, até que novas evidências sejam descobertas.